A relação de
cada indivíduo com o mundo e a representação que fazemos a respeito do que nos
cerca depende de fatores como os sentidos do corpo humano. Sua ausência ou
intensidade modifica a maneira de interpretar a realidade e lidar com o
próximo. As pessoas que não escutam intensificam a importância da visão e,
mediante adaptações comunicativas, transferem a ação da fala para as mãos, que
se tornam protagonistas de uma língua capaz de abrir horizontes até então
perdidos no silêncio.
Esse modo de
comunicação por sinais tem origem remota e foi aprimorado de acordo com o
desenvolvimento da humanidade. Existem mais de 200 línguas de sinais espalhadas
pelo globo terrestre, que variam entre países em virtude das influências e
diversidades culturais. Entre elas está a Língua Brasileira de Sinais (Libras),
utilizada como primeira língua da comunidade surda do país. Portanto, assim
como não é uma língua universal, a Libras tampouco representa o “português com
as mãos”: trata-se de um sistema complexo de comunicação e construção, com
particularidades e fenômenos linguísticos próprios, inseridos na modalidade
espaçovisual.
Contudo,
existem elementos comuns entre as línguas orais e gestuais, conforme explica a
professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), Laralis Nunes de Sousa Oliveira. “A língua de sinais também
possui níveis de análise, sotaque, gírias, diferença etária e regionalismos.
Por exemplo, há sinais distintos para um mesmo referencial no Nordeste e no Sul
do Brasil. Isso não impede a comunicação entre os surdos do país, mas são
variáveis do dialeto”.
Por sua vez,
as diferenças são maiores entre as línguas de sinais de um país para outro. O
português de Brasil e Portugal, inclusive, não coincide na língua de sinais. “A
Língua Gestual Portuguesa (LGP) deriva do tronco germânico da língua de sinais,
enquanto a brasileira tem forte influência da Língua de Sinais Francesa (LSF)”,
detalha Laralis Oliveira. A Libras surgiu na primeira escola para surdos do
Brasil, fundada em 1857, a partir da miscigenação entre os gestos já utilizados
no Brasil e os trazidos pelos professores da língua francesa de sinais.
A primeira
tese da UFRN com foco na Libras foi defendida no último dia 7 de dezembro pela
aluna do doutorado em Estudos da Linguagem, Ivone Braga Albino. Sua pesquisa abordou
a construção de sentidos na língua de sinais, com uma importante conclusão: a
ausência de um dos sentidos tem repercussão apenas na forma de capturar o
mundo. “A limitação que existe não impede as múltiplas possibilidades que o ser
humano tem de interação com o ambiente. A diferença está apenas na modalidade
da língua, fazendo com que o foco que o surdo dá ao mundo seja diferente”,
salienta.
O
reconhecimento da Libras como meio de comunicação e expressão das comunidades
surdas ocorreu em 2002, com a Lei 10.436, de 24 de abril, que também determinou
ao poder público em geral e empresas concessionárias a garantia de formas
institucionalizadas para apoiar o uso e a difusão da Libras. De acordo com o
último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), temos
no país 9,7 milhões de pessoas com deficiência auditiva; destas, mais de duas
milhões com situação severa – perda entre 70 e 90 decibéis (dB).
Desafios
para realizar sonhos
Surda de
nascença, Simone de Souza atualmente é professora do Departamento de Letras da
UFRN e vice-coordenadora do curso de Letras Libras. Oriunda de uma geração cuja
infância não contava com leis voltadas às pessoas com deficiência, em uma época
em que o conhecimento da Libras era escasso, ela mesma só conheceu a língua de
sinais aos 18 anos, quando encontrou uma amiga surda que havia estudado em
Brasília. Antes disso, toda a educação era de forma oral e sem intérpretes
dentro ou fora da sala de aula.
Na escola,
Simone recebia auxílio de colegas de turma, que gestualmente explicavam o que
se passava na sala de aula. Ainda assim, terminou a oitava série [nono ano] sem
intérprete nem contato com outros surdos, concluindo o ensino médio
concomitante ao magistério. “No estágio do magistério, conheci minha amiga
Cledna Paiva, que me ensinou a Libras e me inseriu na comunidade surda. Nesse
momento, encontrei o meu mundo e a minha língua materna”.
Em 2003,
Simone de Souza iniciou a graduação em Pedagogia na Universidade Vale do Acaraú
(UVA). Mais uma vez, sem intérprete em sala de aula, a persistente aluna
solicitou apoio de uma amiga para desempenhar essa tarefa durante os três anos
de curso. O ingresso em Letras Libras se deu em 2006, quando surgiu o primeiro
curso a distância na área, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
cujo pólo mais próximo era em Fortaleza. Após as duas formações, a professora
foi aprovada no concurso da prefeitura do Natal para atuar na área de Libras.
Contudo, o
ponto alto foi em 2014, com a aprovação no concurso para professora da UFRN.
“Por incentivo da minha família, decidi tentar essa vaga para compartilhar na
universidade as minhas experiências anteriores em sala de aula. Agora estou
aqui em processo de aprendizado, pois ensinar alunos de ensino superior é bem
diferente dos demais”, destaca a professora, que agora almeja cursar mestrado.
“Na UFRN, temos a possibilidade de realizar uma prova acessível na
pós-graduação. Essa opção foi inserida recentemente, com a tradução das
perguntas para Libras e a aceitação das respostas dos surdos também por meio da
língua de sinais. As portas da pós-graduação estão se abrindo para os surdos na
UFRN”, comemora. Após a nova modalidade da seleção, dois alunos surdos foram
aprovados em 2017 para cursar mestrado na instituição.
Acessibilidade
e inserção social
A UFRN
também dispõe de 13 servidores efetivos que são intérpretes de Libras, número
positivo em relação a outras universidades, mas que deve aumentar em virtude da
demanda pelo serviço. A necessidade desses profissionais deve ser ainda maior
com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) acessível para surdos, já realizado
em língua de sinais em 2017. Atualmente, existem 44 alunos surdos que usam
língua de sinais na UFRN, todos na graduação em Letras Libras, por ser até
então o único curso com processo seletivo diferenciado.
No entanto,
o Enem acessível e a inserção das pessoas com deficiência na Lei de Cotas
ampliam as oportunidades de ingresso da comunidade surda em outros cursos. “Quando
o surdo precisava fazer a prova do Enem em língua portuguesa, era o mesmo que
colocar um ouvinte para realizar a mesma seleção toda em inglês. O português
não deve se configurar como fator de exclusão do surdo, mas algo a ser agregado
à sua formação. Quando se garante a realização de seleções em Libras, é
possível realmente avaliar o conhecimento do aluno a respeito dos temas
solicitados”, defende Laralis Oliveira, coordenadora do curso de Letras Libras
da UFRN.
A
universidade tem se aberto a essas discussões, que acontecem em nível nacional
entre as instituições de ensino superior para garantir mais abertura aos
estudantes com deficiência. Nesse aspecto, a UFRN sai na frente ao favorecer o
ingresso na graduação e na pós-graduação por meio das seleções em Libras, assim
como a inserção da língua na Política de Linguística da instituição. De acordo
com Laralis, o próximo passo é permitir que o português seja aceito na
pós-graduação como segunda língua dos surdos, ao contrário da atual exigência
de uma língua estrangeira – que nesse caso já consiste em um terceiro idioma
para os surdos.
Fora dos
muros da universidade, tarefas simples do dia a dia se tornam obstáculos em
virtude do abismo que persiste entre surdos e ouvintes, pela ausência de
intérpretes e o desconhecimento da Libras por grande parte da população. Um
atendimento médico ou bancário, por exemplo, é desafiador e às vezes impossível
caso não haja auxílio. “Eu sempre contrato um intérprete particular para ir
comigo a determinados locais, mas nem todos têm condições financeiras e tentam
se comunicar por escrito. A situação é bem complicada. A nossa sociedade ainda
dá passos lentos no quesito acessibilidade”, declara Simone Queiroz.
Fotos: Cícero Oliveira - Ascom-Reitoria/UFRN