Por
João Bosco de Araújo
Quase todos os anos a minha avó Virgínia e o meu avô Salviano
saíam do sítio Umbuzeiro onde moravam, no sertão de Caicó, Rio Grande do Norte,
e caminhavam a pé setenta léguas – cerca de 420 quilômetros – até chegarem à
terra santa, no Juazeiro do Norte, Cariri do meu Ceará, cumprindo a promessa
recebida pelo bom inverno que houvera naquele ano de muita chuva e de boa
colheita e pastagem abundante para o gado. Depois de receberem, da Igreja de
Nossa Senhora das Dores, pessoalmente a bênção do Padre Cícero Romão Batista,
eles regressavam à sua casa percorrendo outras tantas setenta léguas de chão e
de esperança por uma vida plena e farta.
Na verdade, os romeiros do tempo de meus avós andavam com o pé
na estrada, tangendo comboio de burros, transportando os mantimentos que lhes
serviam de alimentos na viagem longa. Contudo, nos anos de 1950, na época de
meus pais, o meio de transporte já era o automóvel e, por conseguinte, eles
percorriam os mais de oitocentos quilômetros de ida e volta em cima de um
caminhão pau-de-arara. Apesar de ainda ser um transporte rude, a viagem ficara
mais fácil e ligeira, embora muitas coisas poderiam acontecer durante o
trajeto. E foi em uma dessas viagens que Manoel Cirino – o queijeiro de meu pai
– participou e contou o que acontecera a outros passageiros do pau-de-arara.
Começamos por Sebastião Lavrado, um romeiro atrapalhado, embora
de boa fé, que sofreu as conseqüências de um desarranjo intestinal causado por
uma galinha requentada e ingerida com muita gordura. Cirino contou que após
parar o caminhão repetidas vezes, o motorista, aborrecido, informou ao pobre
homem que dali por diante não pararia mais o carro. Diante da severa ordem, os
outros passageiros resolveram que a solução seria amarrar Sebastião no canto da
grade traseira da carroceria do caminhão.
E assim foi feito. Lavrado não se
livrou das cordas, no entanto, a partir daquele momento ficou desimpedido de
qualquer situação vexatória, uma vez que lhe foi retirada sua calça até a
altura do joelho e o sentaram no canto da grade, amarrado ao pau-de-arara,
ficando sua bunda à mostra, a fim de que a evacuação transcorresse,
simultaneamente, à velocidade do automóvel, o que deixava para trás um rastro de
poeira e dejetos que somente quem vinha em outro carro e os moradores da beira
da estrada presenciariam àquela visão mambembe e nada convencional vista na
traseira daquele caminhão apinhado de romeiros entoando cantos e ladainhas.
E o caminhão seguia viagem, no rumo de Juazeiro do meu Padim. Ao chegar na terra santa, as mulheres, ainda no carro,
continuavam a cantar benditos em louvor ao Padre. Para este momento, teriam que
estar com o véu na cabeça. Nesse ínterim, Manoel Cirino não deixou escapar e
viu quando Zéfa de Chico Piolho, sorrateiramente, retirou, sem constrangimento,
sua anágua debaixo da saia longa e a colocou na cabeça, substituindo
imediatamente o que seria uma peça do seu vestuário por um pano de cunho
religioso que, por sinal, já estava bastante surrado, imagine só,
segundo contou Cirino.
Em terra firme, os romeiros mais afoitos e endinheirados saíam à
procura de lazer e de objetos de lembranças que ainda hoje são vendidos nas
ruas da cidade. Nessa caminhada, acompanhava Manoel Cirino o seu conterrâneo e
colega de viagem, Augusto Francês, que, diga-se de passagem, era um pão-duro
convicto. Em todas as bancas, narrou Manoel, ele parava, enfiava a mão no
bolso, puxava a carteira e falava em voz baixa e num tom grave: peraí Mané! E começava a contar as cédulas
contidas naquela velha carteira, uma por uma, em contos de reis, para, em
seguida, retornar o dinheiro ao bolso e novamente seguir em frente, percorrendo
o trajeto sem gastar um centavo sequer. E a cena se repetia, como num filme de
Chaplim.
Ah! Os autênticos romeiros do meu Padim Ciço. Um povo de fé, uma legião de homens e mulheres que a gente vê,
freqüentemente, na tevê que mais parece um quadro pintado de um mundo
surrealista de guerreiros subnutridos que ainda hoje sobrevivem a essa religiosidade
cósmica, milagrosamente a abraçar toda uma região de gente sofrida, desgarrada
e desamparada deste Brasil de 500* anos de fé catequista.
Meu Padim, a minha bênção!
*Texto originalmente publicado no jornal
Tribuna do Norte em junho do ano 2000.