Sérgio Fleury (1941-2014)
Por Israel Tabak*
Cotocos de cigarros
enfileirados ao lado da máquina de escrever. Um terrível cheiro de chumbo
saindo de rudimentares condutos de ventilação que passavam também pela oficina,
no tempo das linotipos. O chumbo “encanado” não era suficiente para atrapalhar
a inspiração que a fumaça tragada ao longo do dia trazia a Sérgio Fleury, nos
idos de 1966, quando o conheci na velha sede do Jornal do Brasil, na Avenida
Rio Branco, Centro do Rio de Janeiro.
Fleury era dono de uma
singular sensibilidade para captar pequenos e interessantes detalhes de fatos
que passariam ao largo de um repórter burocrático. Personagens, comportamentos,
cenas, paisagens, um cotidiano em constantes e às vezes traumáticas
transformações na cidade que ele amava muito. Desde cedo também se apaixonou
pelo jornalismo bem feito, decente.
Na realidade, todos nós
que tivemos a sorte de trabalhar no JB daquela época éramos apaixonados pelo
nosso ofício. Tempos de criatividade, inovação, modernização,
profissionalização e dignificação do trabalho do jornalista, em um veículo que
ficou sem competidor durante muitos anos, anos-luz à frente dos demais.
Projeto de vida
Fazer um lead era arte
requintada. Alguns repórteres se torturavam para criá-lo. O texto de Fleury
saía leve e solto, como ele mesmo levava a vida. Tornou-se exemplo de
profissional como hoje há poucos: o repórter que ia para a rua à cata de boas
histórias, avesso às quatro paredes e às fontes de sempre, ao declaratório
insípido, aos números frios e descontextualizados, à notícia que já vem dos
gabinetes numa folha de papel mal redigida.
Procurava desenterrar de
ambientes e lugares menos formais o material que realmente interessava. Foi
assim que, a partir de rabiscos em papéis retirados da lata de lixo,
reconstruiu a história de uma importante reunião, cujos participantes, autores
dos rabiscos, haviam negado acesso aos jornalistas.
A reportagem de
qualidade, como quase sempre ocorre nas redações brasileiras, perdeu um
expoente quando Sérgio Fleury deixou as ruas, convocado para ser chefe de
reportagem, editor ou assessor de imprensa, em vários locais. Mas, quase ao
mesmo tempo, a herança bendita do velho JB ganhou seu mais notável militante. Não
se tratava de um saudosismo estéril, da simples perpetuação de um passado
distante e já desinteressante, como alguns poucos invejosos podem fazer crer.
A criação de um blog
como o Álbum Jotabeniano, as reuniões, eventos criativos, almoços, jantares que
ele organizava, ao lado de outros colegas, tendo como pano de fundo o velho JB,
acabaram se constituindo em um importante resgate histórico da fase mais
apaixonante e criativa da reportagem brasileira, o marco zero do nosso moderno
jornalismo. Viver de fazer boas reportagens, sustentar a família batucando as
“pretinhas” passou a ser possível e – mais do que isso – se transformou no
projeto de vida dos jovens que começavam a sair das faculdades de comunicação.
Convivência rica
Sérgio Fleury, que
tentara antes a arquitetura, começou no Jornal do Brasil em 1965 e não era
formado, como muitos repórteres dos anos 1960. Mas, no momento atual, quando a
chamada convergência de mídias – eufemismo para o barateamento da mão de obra –
e a consequente desvalorização da reportagem bem fundamentada produzem um
retrocesso na qualidade dos veículos, o exemplo de Fleury deve servir de
inspiração para quem ainda acredita na força transformadora do jornalismo.
No JB, o fazer
jornalístico nos absorvia, de dia e de noite, de madrugada, na redação, no bar,
na praia e até em casa. Pobres das nossas famílias que até hoje têm que ouvir
infindáveis histórias, que não cansamos de, obsessivamente, contar e repetir,
como se fosse a primeira vez. Fleury se foi e com ele um repertório de
narrativas deliciosas, que nós, seus amigos, não temos o direito de deixar
sumir da memória.
Vamos continuar
perpetuando, em nossos corações, um tempo incomparável, de alegrias e
conquistas, de rica convivência humana que – na muito sentida ausência de
Fleury – vai continuar iluminando o nosso caminho.
*Israel Tabak é jornalista