Constância Lima Duarte e Diva Cunha Pereira de Macêdo
Transcrito do jornal cultural
“O Galo”, de junho de 1997.
Em 1993, quando revirávamos bibliotecas e arquivos em busca dos traços mais remotos da produção literária feminina do Estado, fomos surpreendidas com notícias da existência de inúmeros jornais e revistas dirigidas e compostas exclusivamente por mulheres. Essas publicações evidentemente pretendiam legitimar uma produção intelectual, na medida em que se colocavam enquanto um espaço legítimo de veiculação de trabalhos literários.
Assim,
de uma pesquisa em andamento, uma outra nasceu. Buscávamos o corpus da literatura
de autoria feminina no Rio Grande do Norte, e encontramos o meio utilizado
pelas autoras para a divulgação de seus escritos. Aos poucos, juntando
informações como quem junta um quebra-cabeça, reunimos títulos, datas e alguns
nomes das que primeiro por aqui tentavam romper barreias sociais e ensaiavam
investidas no espaço público.
Anteriormente
tínhamos encontrado a notícia de um jornal chamado Primavera, que havia sido
publicado por um certo senhor Custódio L. R. d”A em Açu, no ano de 1875, e que
se dirigia “às caras e inestimáveis leitoras”. Os jornais e revistas dirigidos
por (e para) mulheres apenas começam a surgir no início do século, como A
Esperança, que circulou entre os anos de 1903 e 1908, em Ceará - Mirim, e que
surpreende por ter sido todo ele manuscrito! O fato de não ter acesso às
tipografias não impediu que Dolores Cavalcanti e Isaura Carrilho se investissem
do papel de redatores registrassem, numa caligrafia caprichada, as veleidades
literárias das jovens de seu tempo. Aquelas moças provavelmente estavam
impelidas pela esperança de um dia também elas serem reconhecidas enquanto
escritoras...
Anos
depois, em 1913 em Macau, surgiu (devidamente impresso) a Folha Nova, dirigido
inicialmente por Alexandrina Chaves e depois por Maria Emília e Joana G.
Sampaio. Eram suas colaboradoras Leonor Posada e Olda e Dulce Avelino,
conhecidas poetisas de seu tempo. Em Açu, de 1917 a 1919, circulou O Alphabeto
sob a direção de Maria Antônia de Morais, com a colaboração de Cecília Cândida
Silva, Maria Leitão e América de Queiroz e Palmyra Wanderley. Em Macau
encontramos também notícias do jornal A Salinésia, de 1926, criado por um grupo
de jovens e que era apresentado oralmente (!) no Teatro Moderno. Em Caicó,
neste mesmo ano de 1926 circulou pela primeira vez o Jornal das Moças, dirigido
por Georgina Pires e Dolores Diniz. As colaboradoras assinavam seus textos sob
os pseudônimos de Marinetti, Potiguara, Violeta, Flor de Liz, Helenita,
Sertaneja, entre outros. E em Currais Novos existiu O Galvanópolis, de 1931 q
1932, sob a direção de Maria do Céu Pereira.
Em
Natal, a primeira iniciativa parece ter sido Via-Láctea, idealizada e dirigida
por Palmyra e Carolina Wanderley, que circulou durante os anos de 1914 e 1915.
Além dele encontramos ainda em Natal os jornais Sursum, de 1937, O Potiguar, de
1939, entre outros.
Vejamos
esta publicação intitulada Via-Láctea. Após tê-la procurado nas principais
bibliotecas públicas e particulares de Natal e do interior, sem sucesso, fomos
encontrá-la na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em meio a outros
periódicos de mesmo nome, de locais e épocas diferentes. Ali estava, em nossas
mãos, a mesma Via-Láctae de Palmyra e Carolina Wanderley que numa estrelada
noite de 1914 havia surgido nos céus potiguares. Eram apenas oito números – de
outubro de 1914 a junho de 195 – mas o suficiente para testemunhar a iniciativa
daquelas moças de também participar do espaço público.
Como
no oitavo número uma das redatoras reclamava da pequena participação das
colaboradas, julgamos que a publicação tivesse terminado aí. Mas pesquisas
posteriores, principalmente em A República, revelaram que mais alguns números –
pelo menos uns quatro ou cinco – foram publicados de Via-Lácea. Aliás,
encontramos em A República referências a praticamente todos os números do
jornal. Cada novo lançamento era noticiado, sendo que algumas vezes com
veementes elogios à coragem de suas autoras e à qualidade o Material impresso.
Mas
nem tudo eram flores para as jovens redatoras. No mês que comemoravam um ano da
existência do jornal, por exemplo, encontra-se o comentário de um jornalista
que nos permite perceber com nitidez a resistência que enfrentaram, as críticas
e uma certa descrença no trabalho que realizavam. O autor da nota confessa
abertamente sua surpresa pelo fato de a Via-Láctea ter conseguido sobreviver
tanto tempo, nestes termos:
A
Via-Láctea festejou ontem o seu primeiro aniversário. Não nos queriam mal as
redatoras da simpática revista por lhes dizer que nunca acreditamos na
realização deste milagre. Sempre pensamos que uma revista de moças, redigida
exclusivamente por moças, terá em nossa terra a prematura existência das rosas.
Não havia nesse pressuposto sombra de desconfiança na inteligência e boa
vontade as colegas que revelaram, dês da publicação do primeiro número da
Via-Láctea, qualidades à altura da espinhosa iniciativa. O nosso receio
provinha do ambiente intelectual indígena, dessa indiferença de natal para
manifestações artísticas, tidas como desnecessárias à vida da cidade. (A
República, 26/10/1915)
Esta
confissão de pouca fé na sobrevivência da revista, devido principalmente ao
fato de se tratar de uma publicação feita por mulheres, encontra-se também em
outros artigos. Da mesma forma, a confusão entre as autoridades e o seu
trabalho através do emprego sistemático de expressões concernentes às
qualidades esperadas ou desejadas para s moças. Assim, para a maioria dos
jornalistas, a Via-Láctea era sempre “mimosa” “encantadora” e “gentil”, numa flagrante
feminização do periódico que lutava par se impor enquanto trabalho sério, e que
se propunha lutar pelo aperfeiçoamento intelectual da mulher potiguar.
O
primeiro grupo de colaboradoras foi constituído por oito moças da melhor
sociedade letrada de Natal, como Palmyra e Carolina Wanderley, Stella Gonçalves,
Maria da Penha, Joanita Gurgel, anilda Vieira, Dulce Avelino e Cordélia Sílvia
e Sinhazinha Wanderley. A forma como se dava a colaboração de Cada uma com
certeza era diferenciada, pois é comum encontrar um número maior de textos
assinados por algumas no mesmo periódico, enquanto outras aparecem apenas com
um artigo ou poema. E logo no segundo número Palmyra e Carolina Wanderley
assumem a coordenação geral dos trabalhos.
Um
dos graves problemas que uma pesquisa como esta costuma enfrentar è justamente
a identificação dos pseudônimos, que terminam por funcionar como verdadeiras
máscaras que se multiplicavam sempre em touros e novos nomes. O uso do
pseudônimo, aliás, foi um artifício muito utilizado pelas mulheres nos séculos
passados, e mesmo nas primeiras décadas deste, como forma de se proteger e de
preservar os familiares da exposição pública e da crítica. Adentrar pelo campo
literário (ou o jornalístico) naqueles tempos era uma atitude decididamente
audaciosa para qualquer mulher, por mais competente ou talentosa que fosse. E
no Rio Grande do Norte não era diferente.
Assim,
apesar de a Via-Láctea trazer na primeira página os nomes de suas autoras, os
textos estão quase sempre assinados por outros nomes, como Fanette, Mércia,
Marluce, Hilda, Nídia, Zanze, Myriam, Ida Silvestre, Ângela Marialva, Violante
do Céu, Jandira, etc. etc, totalizando cerca de vinte e cinco pseudônimos.
Quanto ao teor dos escritos o subtítulo “Religião, Arte, Ciências e Letras”
aponta para seu conteúdo. Predominam
poemas, contos e crônicas, em meio a comentários obre arte, descobertas
científicas e matérias sobre o papel da educação na formação das moças.
Encontra-se
nas páginas da Via-Láctea, inclusive, uma polêmica entre duas colaboradoras
Acerca da educação que devia ser ministrada à mulher, que bem deve revelar as
opiniões conflitantes sobre o tema que circulavam na época. Uma defenda
educação voltada para s funções domésticas; a outra por acreditar na
emancipação feminina através da educação, exige uma educação mais consistente que
permitisse à jovem competir com o rapaz no campo de trabalho. Aliás, esta
discussão devia estar na ordem do dia pois, acabava de ser inaugurada na
cidade, com muita pompa e circunstância, a Escola Doméstica, cujos diretores
alardeavam que sua proposta educacional representava a Última palavra na Europa
em educação de meninas...
Em
matérias de jornais, um cronista que costumava assinar “Jacynto” (e que não era
outro senão Eloy de Souza, irmão de Henrique Castriciano, o fundador da Escola
Doméstica) refere-se de modo desabonador ao Via-Láctea e defende a função
social da mulher preconizada pela nova escola. Não deixa de ser bem
significativo, comparar o nome do jornal que veiculava as idéias da Escola
Doméstica. “O Lar”, com ao da revista “Via-Láctea”: enquanto um refletia
nitidamente os limites domésticos de seu horizonte de atuação, outro adotava um
título que bem pode ser considerado a prova contundente de que maiores e bem
mais elevados era os seus ideais.
Estas
questões, aqui aprestadas tão ligeiramente, refletem apenas nosso desejo de
incentivar outros pesquisadores para o estudo da participação das mulheres
potiguares na história intelectual do Estado. Se queremos realmente conhecer o
difícil trajeto percorrido por nossas antepassadas na busca de seus direitos e
na conquista de seus espaços, será preciso pesquisar em antigos jornais e
revistas. Lá com certeza encontram-se ainda hoje o eco de suas vozes.
- Com publicação do
Jornal Zona Sul, em 12/08/2022.
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Saiba aqui mais sobre mulheres potiguares
pioneiras no jornalismo, inclusive a caicoense Júlia Medeiros, que não teve o reconhecimento
merecido na época de sua atuação.
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