MARACATU ATÔMICO
Por Heraldo Palmeira*
Eu era muito jovem
quando ouvi um professor dizer que um homem é tanto mais universal quanto mais
original se mantém ao representar as riquezas da sua aldeia.
Muito tempo depois eu
estava numa grande universidade carioca, envolvido com a produção de um evento
dedicado à literatura musical. Naquela semana repleta de nomes conhecidos, o
público mal passou de meia casa no enorme teatro.
Até que, numa tarde, foi
preciso fechar as portas porque não cabia mais ninguém. Na hora marcada, o
homem esguio, lépido e fagueiro entrou. Pelo meio dos comuns, como entram os
comuns.
Ao tempo em que ia
caminhando em direção ao palco e sendo notado, foi levando a plateia à loucura.
Antes mesmo de abrir a boca, provocou uma espécie de convulsão coletiva. Todos
estavam ali para viver duas horas de pura felicidade.
O homem subiu ao palco.
E ninguém me contou, eu vi com meus próprios olhos: quase dez minutos de
aclamação apaixonada, sem que lhe permitissem abrir a boca para uma única
palavra de saudação.
O homem começou a andar
de um lado para o outro, parando no centro e em cada um dos extremos do palco.
A cada parada um assobio forte, com os dedos indicadores enfiados nos cantos da
boca no melhor estilo moleque, espalhando seu combustível para ampliar aquele
incêndio emocional.
Ali estava o homem que
alguns acusaram de burguês que apropriou-se da arte popular do povo simples.
Ali estava o nacionalista que reagiu mal à bossa nova, por considerá-la filha
da influência do jazz. Que abominou o tropicalismo estrangeirado pelas
guitarras dos baianos fantasiados de mutantes.
Ali estava quem chamou o
maioral do mangue beat às falas, bradando seu nome com sotaque sertanejo:
“Chico Ciência”. E que caiu em prantos na alça do caixão em sua morte
prematura. Ali estava quem descia o pau em Michael Jackson, Madonna e John
Lennon com astúcia de matuto. Sem machucar. Alguém que relativizava os Beatles
com um displicente e gracioso “é claro que já ouvi falar deles, mas…”.
Ali estava o imortal que
pouco aparecia na Academia Brasileira de Letras. Ali estava o homem acusado de
muita coisa, vítima de muitas invejas e maledicências apenas por ser ele mesmo,
daquele jeito. Ali estava um homem com coragem para ser original.
Ali estava um
guerrilheiro cultural que fez global a arte popular que lhe acusaram de pegar
emprestada do povo simples. Que trouxe o mundo para sua aldeia. Ali estava o
malabarista da palavra que nos encheu de felicidade por duas horas. Simples,
complexo, interativo, dengoso, matreiro, maroto, certeiro, acolhedor,
tonitruante, intransigente, delicado, sedutor, sagrado, profano. Engraçado até
o talo.
Ali estava, como ele
dizia de si mesmo, “um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem
burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente, um profeta”.
Ali estava uma obra de
arte ambulante, um maracatu atômico construído por pitadas populares e eruditas
como ninguém jamais misturou. O artesão de um reino cujo mapa seguirá secreto.
Ali estava uma
personalidade múltipla, o inigualável Ariano Suassuna. A quem não pude negar,
num cantinho escuro daquele palco inesquecível, nenhuma das minhas lágrimas de
embevecimento por ver de tão perto tamanha força da natureza.
Um Quixote solitário e
genial. Um visionário com seus cata-ventos armoriais soprando brasões inimitáveis
sobre a terra brasileira. Um cabra arretado capaz de contrariar o sopro comum
ao afirmar que “globalização é o nome novo do velho colonialismo”. Um
resistente que jamais cedeu ao computador, preferindo desenhar suas letras
maiúsculas com caneta sobre papel antes de convocar a velha máquina de escrever
para dar curso ao veio precioso.
Um bicho do mato
multimídia manual que destroçou com gaiatice a tecnologia que tentavam lhe
apresentar, e que corrigia automaticamente seu nome digitado Ariano Villar
Suassuna: “Como vou escrever numa coisa que me chama Ariano Vilão Assassino?”.
Um homem que, no mundo
real, me deixa de luto para o resto da vida – como um Chicó ou um João Grilo
sem pai, a quem resta se agarrar à proteção de Nossa Senhora Compadecida dessa
orfandade cultural.
Um homem que, nas terras
da Pedra do Reino, seguirá imperador rindo da morte Caetana para todo o sempre.
Como cabe aos colossos imortais.
*Heraldo Palmeira é documentarista e produtor musical