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domingo, 23 de março de 2025

Pilão-deitado no fogo cruzado de Pedreira

 Por João Bosco de Araújo

Jornalista ▶boscoaraujo@assessorn.com  

O sol brilhava radiante. No curral, o gado esperava em fila para ser tangido à sua pastagem natural. Uma rês havia sido abatida e o couro já estava sendo esticado. Na latada, ao lado da casa-grande, um homem esquartejava aquele animal de aproximadamente 15 arrobas. No engenho mais homens a conversar e a fazer não sei o quê, pois sequer havia vestígio do melaço-de-cana de safras anteriores. O dono da fazenda não se sabe, mas ninguém o viu. Tudo parecia crer, seria um dia como outro qualquer, apesar daquela sutil movimentação não tão habitual assim.  

De repente um grito. O eco ressoou em volta e todos escutaram atentos:”Óia os macaco”! A ordem era do líder e cangaceiro Antônio Silvino, da Paraíba, e macacos eram soldados comandados por um sargento de polícia da cidade de Santa Luzia, também do vizinho Estado paraibano. A fazenda Pedreira estava distante cerca de quarenta quilômetros do destacamento policial, embora fosse localizada no município de Caicó, no Rio Grande do Norte e os cangaceiros estivessem ali hospedados como convidados. O ano era de 1898, mas há controvérsias de que poderia ter sido em 2001.

O cerco ao bando veio por trás, onde todos estavam alojados, dentro da casa-de-engenho ao lado da casa-grande. Aos primeiros tiros, Antônio Silvino saiu correndo por entre o corredor que separa os dois prédios e com seu rifle apoiado a uma luneta potente mira o pelotão. Com um tiro certeiro derruba dois homens enfileirados que se aproximavam em combate. Os dois caíram impiedosamente ao chão e já estavam mortos fazendo com que o restante da tropa se recuasse de imediato e embrenhasse na mata fechada sem deixar rastro, numa rapidez trepidante.

Baixada a poeira e cessado o fogo, o bando, vitorioso, se apressa em socorrer os feridos e contar as baixas. Além de dois policiais, estava tombado no centro do pátio da casa sede o cangaceiro Pilão-Deitado. O homem que, justamente na hora do ataque surpresa da volante, estava do lado de fora a cuidar dos preparativos da carne do boi abatido naquela manhã e que seria servida no almoço que o dono da propriedade havia autorizado para os "visitantes-hóspedes" de sua fazenda de gado leiteiro e pecuária.

Nas redondezas, as pessoas que moravam por mais de meia légua nunca mais se esqueceram do zumbido das balas que passavam perto delas, obrigando-as a deixarem seus afazeres na agricultura para poderem se refugiar em local seguro, por trás de serrotes ou dentro de suas casas.

Nesse vaivém, o sol já começava a declinar e os dois corpos ainda continuavam prostrados ao chão, embora estivessem embrulhados em esteiras de palha de carnaúba. Faltava, portanto, uma pessoa que se dispusesse a levá-los em carga de burro até à cidade de Santa Luzia.

Pilão-Deitado, o cangaceiro, fora sepultado no cemitério de Palma, distrito do município de Caicó. E os dois policias, quem os levaria para o sepulto? Continuava o dilema e ninguém ousava em se oferecer para a difícil tarefa.

O dia já estava perto de findar, foi aí que alguém se lembrou de Joca Ferreira, o destemido adestrador de burro-brabo que pegava boi  com as mãos e montava sem piedade - um verdadeiro bicho-do-mato. Sem demora, mandaram chamá-lo no sítio Umbuzeiro, vizinho à Pedreira.

Joca Ferreira não hesitou e veio ligeiro. Sem constrangimento, empacotou os dois policiais mortos, jogou-os de um lado e de outro do seu burro de carga, amarrou-os com cilha de couro cru, montou no meio dos dois cadáveres e seguiu viagem, noite adentro, rumo  de Santa Luzia. No caminho parou por mais de uma vez para beber água e qual não era a surpresa dos moradores quando lhe perguntavam o que havia naquele burro e ele respondia, sem pestanejar, que estava conduzindo uma carga de gente morta.

Uns, incrédulos, não se importavam com o que ouvira, embora outros, por medo ou superstição, imediatamente batiam a porta na cara do jovem carregador de defuntos. Sem muito descansar, chegou sem medo  ao destino final com sua carga mortal.

Joca Ferreira do Umbuzeiro em sua vida de cabra da peste – baixinho, de pernas tortas –  viveu por quase cem anos naquelas pedreiras e veredas  semi-áridas deste País tropical.                         

É interessante observar nisso tudo que nesse mesmo ano nascia em Natal o historiador e folclorista Câmara Cascudo que tempos depois em sua obra cita este acontecimento que, por sinal, na época o seu pai  estava  em Caicó, como delegado de Polícia.

E também quem ainda engatinhava naqueles idos e dava os seus primeiros passos era um menino franzino do sertão pernambucano, batizado de Virgulino Ferreira, que  décadas depois se tornaria o destemido Capitão Virgulino Ferreira ou simplesmente  Lampião - o Rei do Cangaço -  cantado em prosa e verso por este Brasil de meu-boi-bumbá e meio-mundo afora.

Quanto a Pilão-deitado, jaz em sua eterna morada e o fogo cruzado da Pedreira entra para a história do cangaço brasileiro!

Nota do autor: Este artigo foi publicado no jornal Tribuna do Norte em 27 de dezembro de 1999 e, posteriormente, em 2001, como apresentação/prefácio do livro “O Fogo da Pedreira”, de autoria do jornalista Orlando Rodrigues - Caboré, por ocasião dos 100 anos do ocorrido, tanto que há registros históricos de que Antônio Silvino e seu bando de 15 cangaceiros foram recebidos na Fazenda Pedreira, em 14 de fevereiro de 1901, propriedade e residência do “Coronel” Janúncio Salustiano da Nóbrega. 

Caboré, o fogo, os macaco, o rifle, o tiro, Pilão-deitado, Tio Joca, o burro de carga, Pedreira, cangaço!  

As histórias recebidas ainda na infância me foram contadas pelo meu pai Pedro Salviano de Araujo, o irmão dele, meu tio Manoel Salviano e o tio deles, Joca Ferreira, irmão da mãe deles, Virgínia, que foi minha avó, todos raízes do velho Umbuzeiro, propriedade dos meus tataravós Vicentinho e Aninha, nos quintais da Fazenda Pedreira, em Caicó.
Foto do lançamento do livro “O Fogo da Pedreira”, em noite de autógrafos no Solar Bela Vista, em Natal, com matéria para o Diário de Natal, posteriormente, o jornalista Orlando Rodrigues lançou o livro em Caicó e Brasília. Legenda foto: Abimael Silva, editor do livro, o autor, jornalista Orlando Rodrigues Caboré (in memoriam), vestido de vaqueiro para relembrar Tio Joca, e este que trabalhava no Diário de Natal, com o livro em mãos já autografado. 

- Leia também: Os aboios de Tio Joca ecoam na memória de Umbuzeiro 

Leia mais sobre o jornalista Orlando Rodrigues Caboré 

No topo, a foto da sede da Fazenda Pedreira/

reproduzida da Internet

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