--- Walter Medeiros*
Uma das fortes lembranças que guardo de Glênio Sá é
de uma semana que passamos com as famílias em Pititinga e, na beira da praia,
passos lentos, ele disse que uma barreira roxa do caminho trazia-lhe de volta
uma lembrança muito emocionante da juventude. E começou a cantar uma música de
Gilberto Gil que marcou seu tempo de secundarista em Fortaleza. - "O
dinheiro que eu lhe dei, p'ro tamborim..." - Você não conhece essa música?
– perguntou-me. - Conheço. Um sambinha gostoso. Mas nunca ouvi a letra. - É
assim... Tentou rememorar, mas não conseguiu completamente.
Outra forte lembrança vem de uma noite de 1976, na
qual, por acaso, conheci o amigo, futuro cunhado da minha mulher e vizinho. Foi
no Braseiro, um bar da orla marítima de Natal, um dos pontos preferidos pelos
estudantes universitários para conversar sobre política, mesmo cientes de que
eram sempre observados por policiais disfarçados. Naquela noite, como que num
desabafo incontido, o ex-guerrilheiro contou parte da sua história a três
companheiros. Desde as lutas como secundarista, em Fortaleza, até a vida
clandestina no Norte, a peregrinação pelas prisões e a libertação. Ele
trabalhava pela implantação do Partido, cujos documentos reconstituía através
de citações ouvidas nas transmissões da Rádio Tirana, da Albânia ou de algum
registro em jornais alternativos.
Minha chegada à Universidade se deu em 1974. Fazia o
curso de Direito, que dividia um bloco com o Curso de Serviço Social. Aos
poucos os alunos reestruturavam suas entidades dentro do que permitia o Decreto
477, uma norma que proibia estudante de se manifestar e fazer política
partidária. O campus era coalhado de policiais disfarçados nas salas de aula e
corredores. Qualquer assunto político, para eles, comprometia a segurança
nacional e era motivo para o estudante ser chamado a depor na Assessoria de
Segurança e Informação - ASI.
Era, porém intrínseco o sentimento de revolta pela
falta de liberdade de expressão no país, onde havia também uma Lei de Segurança
Nacional que proibia a imprensa de divulgar informações que não passassem pela
censura. Alguns jornais tentavam levar uma mensagem democrática, mas eram
perseguidos e empastelados freqüentemente. Os estudantes sentiam prazer, apesar
do medo, em ajudar jornais chamados de alternativos, como o Movimento, Em Tempo
e EX, que noticiavam fatos não divulgados pelos jornais convencionais.
Reunidos num aparelho que funcionava no quarto dos
fundos de uma casa, Glênio, eu e Graça sintonizávamos a Rádio Tirana, da
Albânia. Em meio à audição, o guerrilheiro lembrou dos tempos em que não sabia
ainda qual seria seu destino. E começou, emocionado, a falar sobre suas
lembranças. Recordou que em maio de 1969 era estudante e foi preso no Crato,
porque estava tentando junto aos meus colegas rearticular a União de
Estudantes. A prisão foi divulgada no Correio do Ceará, quando ele foi
recambiado para Fortaleza. O jornal dizia que ele tentava fazer uma
rearticulação subversiva. Dizia também que tinha participado de uma reunião
secreta, na qual fizera severas críticas ao regime e ao mesmo tempo conclamara
a participação de uma representação da região caririense em uma reunião grande
que seria realizada em Fortaleza, em fins daquele mês.
A primeira prisão tinha sido tão marcante, que ele
lembrava mais detalhes da notícia, a qual chamava a sua participação de
manobras. A notícia dizia ainda que ele tinha distribuído boletins considerados
subversivos pelas autoridades. Ele esteve preso na Delegacia Especial daquela
cidade, do Crato – relembrava. Lembrava também que somente no outro dia prestou
depoimento, sendo ouvido oficialmente pela Polícia Federal. Eles achavam que o
seu depoimento poderia determinar a efetivação de novas prisões, inclusive dos
demais que participaram do encontro secreto. Glênio ficou recolhido a um dos
xadrezes da Polícia Militar, em Fortaleza, e no dia seguinte saiu outra notícia
no jornal. Desde 1968 ele participava ativamente do movimento estudantil
secundarista. Foi preso outra vez, depois de liberado, em 1969.
*Jornalista
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