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domingo, 21 de dezembro de 2025

O MELHOR PRESENTE DE NATAL

 Por Fernando Luiz*

Era noite de Natal.  Minha família morava numa casa pequena que ficava no Areal, nas Rocas. Na Rua Condor, só havia casas de um lado: no lado oposto existia um declive acidentado onde crescia uma vegetação e lá embaixo ficava a lagoa do Jacó. Da frente da minha casa, levantando a vista na direção da linha do horizonte podíamos ver a movimentação dos navios que chegavam e saiam do porto.

A casa onde minha família morava era pequena, com uma sala, dois quartos e um minúsculo quintal. A mobília era simples: não tínhamos geladeira, tomávamos banho de cuia e eu nem sabia o que era um aparelho de TV. Na sala havia um rádio grande onde eu ouvia Jerônimo, o Herói do Sertão pela Rádio Poti e acompanhava as cantorias de Patativa e Chico Traíra sentado no colo de Pompeu Paulino, meu avô materno, a quem eu chamava de pai velho.

Aos cinco anos – faria seis no dia 21 de janeiro do ano seguinte, - filho único, eu tinha uma rotina diária: a cada amanhecer, depois do café da manhã, ia para o alpendre da frente da casa, sentava-me num tamborete sob o caramanchão florido, repleto de pequenas rosas vermelhas que só exalavam perfume ao anoitecer e a cada amanhecer ficavam espalhadas pelo chão de areia batida. Ali eu ficava um bom tempo contemplando o movimento dos navios no porto ou tentando contar os carros, minúsculas formigas de cores variadas que subiam e desciam pela ladeira da rádio Poti, na avenida Deodoro da Fonseca.

Eu estudava à tarde no Instituto Miramar, (escola particular da professora dona Evita), que ficava na rua Jordanês, nas Rocas. Ao anoitecer costumava ouvir com minha mãe e minha avó materna a Ave Maria de Júlio Lousada, pela Rádio Tupi. Depois do jantar, mais brincadeiras com os amiguinhos da vizinhança e na hora de dormir, o ritual de sempre: tomar um banho, escovar os dentes, deixar minha mãe me perfumar com Leite de Rosas, vestir o pijama e, sentado na cama, rezar ao Anjo da Guarda: “Santo Anjo da Guarda, meu zeloso guardador, já que a ti me confiou a piedade  divina, sempre me rege, guarda, governa e ilumina.”  Depois de rezar eu me aninhava suavemente nos braços da minha mãe, ouvindo-a cantar” Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino, que tem medo de careta...”

Aos sábados era “sagrada” a caminhada matutina ao apagar das estrelas, ouvindo um galo cantar distante, rumo à Praia do Meio, para correr, brincar de tica, banhar-se na água rasa e   construir castelos de areia que as ondas sempre insistiam em destruir...

Na rua Condor nenhum dia era igual ao dia anterior... Até hoje, incontáveis pedaços de lembranças estão guardados no baú da minha memória. Fragmentos de certas frases e gritos que escutei ainda ressoam em meus ouvidos:

- O Papa Pio Doze morreu!

- Um circo pegou fogo em Niterói!

- O Brasil foi campeão!

- A casa de Luiza de Paula pegou fogo!

São muitas lembranças, mas de todas elas, uma em especial prende-me sentimentalmente até hoje à rua Condor (hoje rua Desembargador Lins e Silva) ...

Era noite de Natal do ano de 1956. Aos quatro anos eu dormia, quando lá pelas tantas, fui acordado por um barulho estranho. Abri os olhos mas, com medo, fingi que estava dormindo e deixei os olhos semicerrados.  Foi aí que vi a porta do quarto se abrir lentamente e surgir a figura de um velhinho rechonchudo, com uma barba branca, segurando com uma mão um saco que trazia às costas e, com a outra, um embrulho vermelho, da cor da sua roupa. Olhando para mim, ele agachou-se lentamente e deixou o embrulho no chão, encostado à parede, próximo à porta. Permanecendo acordado, mas fingido dormir, movi lentamente meu braço direito, (que pesava toneladas por causa de uma estranha dormência) na tentativa de tocar minha mãe, para que ela pudesse dividir comigo aquele momento assustadoramente mágico, mas percebi que estava sozinho na cama. Nesse momento o velhinho de barbas de algodão reergueu-se em silêncio e - como se soubesse que eu estava acordado, com sua mão enluvada e alva como flocos de neve, fez um aceno pra mim, jogou um beijo, encostou a porta lentamente e sumiu tão silenciosamente como chegara. Com o coração batendo a mil, fixei meus olhos no embrulho vermelho e perguntei a mim mesmo: “Será que ele trouxe o presente que eu pedi?”  Tentei me mexer, não consegui. Quis chamar minha mãe, mas minha voz não saiu... Por que será que ela não estava dormindo comigo naquela noite? Dividido entre a certeza de ter visto Papai Noel e o medo de simplesmente ter sonhado com ele, pedi a Papai do Céu para me fazer adormecer novamente. Fui atendido.

No dia seguinte, ao acordar, percebi que o embrulho que Papai Noel havia deixado não estava mais junto da porta, mas em cima da minha cama, próximo aos meus pés. Ergui-me num sobressalto e ao abrir o embrulho, vi que ali estava o presente que eu havia pedido em prece inúmeras vezes a Papai Noel, não sem antes confessar para a minha mãe que tinha medo de que o bom velhinho não pudesse me dar um presente tão caro: um belo Buick verde, sem capota, com direção, pneus de borracha, um motorista de quepe e uniforme branco.  Aquele Buick com seus dois para-lamas traseiros parecendo duas barbatanas de tubarão (por isso era chamado “rabo de peixe”), que corria sozinho depois de alguns impulsos, era o sonho de qualquer criança daquela época.

Na Rua Condor, eu era o único menino que tinha ganhado um Buick de Papai Noel no Natal. Gostava de dividi-lo com meus amigos, como eles também dividiam comigo seus brinquedos. Brinquei com aquele Buick por muito tempo. Com o passar dos meses ele foi se deteriorando: os pequenos pneus ficaram carecas e se soltaram, o boné do motorista caiu e o para-brisa dianteiro de plástico se soltou. Depois, o motorista sumiu e o motor à corda se quebrou; meu Buick verde não andava mais. Mesmo assim, durante anos guardei sua carcaça. Até que, um dia, a vida tirou minha família da Rua Condor. Pouco a pouco, passamos a morar em lugares diferentes: São José do Mipibu, Ceará-Mirim, Nova Cruz. Numa destas mudanças, alguém jogou no lixo o Buick verde que Papai Noel tinha me dado de presente. E foi exatamente no dia em que isto aconteceu, que eu percebi que tinha começado a deixar de ser criança...

Até hoje, quando se aproxima a noite do Natal, renasce no meu olfato o perfume do caramanchão florido e na minha memória a imagem do Papai Noel silencioso e generoso. E eu revejo mentalmente a imagem do Buick verde, novinho em folha, em todo o seu esplendor. Aquele presente inesquecível me ensinou uma coisa, da qual jamais me esquecerei: o melhor presente de Natal não é o mais caro e sim aquele que fica guardado na memória pelo resto da vida...

Instagram: @fernandoluizcantor

*Fernando Luiz: Cantor, compositor, escritor e produtor cultural. Formado em Gestão Pública, apresenta o programa Talento Potiguar, aos sábados, às 8h30 na TV Ponta Negra, afiliada do SBT no RN.

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