"O delegado sou
eu!"
Por Emanoel Barreto*
Eu
o vi duas ou três vezes: bêbado, mirrado, bracinho fino erguido e indicador
apontado para o alto, caminhava bradando uma inútil advertência: "O
delegado sou eu! O delegado sou eu!" Ninguém contestava, até porque nele
ninguém prestava atenção a não ser eu, em minha ingênua curiosidade de menino;
não sei se perplexo ou estranhamente fascinado com aquela cena que oscilava
entre o ridículo e o comovente eu acompanhava com o olhar aquele homem trôpego
e malvestido. Isso aconteceu em algum instante dos anos 1960.
Da
minha casa eu o via seguir ladeira abaixo, Rua Princesa Isabel, centro de
Natal. Ele passava na calçada do outro lado da rua e seus gestos hoje me
lembram um Carlitos torto e anônimo, um brasileiro pobre que se dizia
autoridade.
Bem
que eu poderia tê-lo presenteado
(meninos, se você não sabe, podem tudo) com uma linda viatura policial
que naqueles tempos eram chamadas de "tintureiras", para ele fazer
valer sua disposição de Quixote e prender todo mundo. A tintureira seria toda
pintada em preto e branco e Delegado poderia cumprir mandados, fazer
flagrantes, capturar os maus.
E
mais: eu poderia pedir ajuda aos meus amigos Zorro e Tonto, Billy the Kid, Kit
Karson, Roy Rogers, o Fantasma, Búfalo Bill, Águia Negra, Falcão Negro, Daniel
Boone, Dom Chicote, Cavaleiro Negro, Kid Colt e, claro, Jerônimo, Aninha e
Moleque Saci. Se a coisa ficasse muito feia poderia chamar o Rei Artur e os
cavaleiros da Távola Redonda e mais: El Cid, o imperador Carlos Magno e os Doze
Pares de França. Athos, Porthos, Aramis e d'Artagnan também poderiam vir.
Eles
eram invencíveis, eram meus amigos e jamais se negariam a ajudar a mim e ao
Delegado. Eu daria a ele um dos meus revólveres de plástico, quem sabe até
mesmo um de metal, o mais bonito, o que disparava espoletas.
Com
essas armas eu mesmo prendi muitos bandidos que habitavam esconderijos
imaginários somente conhecidos por mim. Eu tinha até uma estrela de xerife
ganha numa promoção da Toddy, premiação chamada Patrulheiros Toddy. Eu era um
Patrulheiro Toddy e bem poderia ter ajudado ao Delegado. Mas não fiz nada. Não
chamei os caubóis meus amigos, nem os grandes espadachins, não lhe dei a
tintureira, não lhe dei meu revólver, não saí galopando a seu lado rua
abaixo.
Nada,
nada, nada; somente o vi passar; tão desamparado, maltrapilho e tão bêbado, um
pobre brasileiro e se perder na pesada ladeira da Princesa Isabel.
E
ele se dizia delegado. Ele só queria respeito. Porque tinha a autoridade de ser
povo, pobre e cambaleante.
Após
aquele dia nunca mais reencontrei o Delegado. E, acho, somente hoje descobri
que ele também era meu amigo, e tão corajoso e firme como Jerônimo ou Zorro.
Afinal, eu e o Delegado vivíamos em mundos próximos, universos imaginários, e
queríamos ajudar, prendendo bandidos. Naquele tempo, além de querer prender
bandidos, eu tinha outra paixão: queria ser arqueólogo, pensava em ir ao Egito
e fazer grandes descobertas. Não fui.
Hoje
penso no meu amigo Delegado, reduzido a uma réstia de lembranças. E agora me
vem, não sem um certo temor e uma fisgada de angústia: acho que quando ergo
minha voz nestes textos de internet também estou descendo alguma ladeira e
grito como o louco sublime: "O delegado sou eu! O delegado sou eu! O
delegado sou eu!"
*Publicação da página do
jornalista - Coisas de jornal
0 comentários:
Postar um comentário