Por José de Paiva Rebouças de Ascom
Instituto do Cérebro/UFRN
A
comunicação é uma função-chave na vida humana. Por meio dela, o homem expressa
o pensamento, compreende e apreende as características e objetos do mundo. Uma
das muitas formas de se comunicar é a comunicação verbal; contudo, muitas
vezes, esta comunicação é afetada por distúrbios neurológicos do
desenvolvimento, entre eles o transtorno do espectro autista (TEA) e a gagueira
persistente.
Acredita-se
que as deficiências de linguagem associadas a estes distúrbios podem acontecer
devido a perturbações na formação das áreas cerebrais envolvidas na comunicação
vocal. Pensando nisso, o laboratório de Neurogenética do Instituto do Cérebro
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) está desenvolvendo um
sistema modular de linhagens transgênicas de pássaros canoros a serem
utilizados para modificar gênes endógenos como modelos genéticos para defeitos
no aprendizado vocal.
O objetivo
da pesquisa é entender o mal funcionamento do cérebro na presença de genes
defeituosos associados com estes distúrbios. O neurocientista Tarciso Velho
comanda o estudo, que vai introduzir mutações em genes associados à gagueira
persistente e ao autismo nestes modelos animais, buscando entender o que
acontece na formação e funcionamento dos circuitos cerebrais e quais as
consequências para o comportamento vocal.
Um dos 65
jovens cientistas brasileiros selecionados em 2017 pelo Instituto
Serrapilheira, primeira instituição privada do país dedicada exclusivamente ao
fomento científico, para dar prosseguimento ao estudo, ele acredita que “no
momento em que for possível entender o que está diferente no cérebro, durante a
gagueira (e o autismo), podemos começar a pensar em como interferir para tentar
melhorar a qualidade de vida das pessoas”.
Por
enquanto, defeitos genéticos não são, com pouquíssimas exceções, corrigíveis em
humanos. Porém, a pesquisa realizada no ICe-UFRN é básica e objetiva
desenvolver conhecimento capaz de guiar o avanço de terapias para melhorar a
qualidade de vida de pacientes com estes transtornos, e informar a pesquisa
translacional, cuja característica busca promover a pesquisa interdisciplinar e
acelerar a troca entre ciência básica e clínica, para assim aplicar o
conhecimento científico na prática médica.
Na primeira
fase do financiamento, o neurocientista terá um ano para gerar linhagens de
pássaros transgênicos. Caso seja bem-sucedido na geração destes animais com
comportamento alterado – que se aproxima dos defeitos de comportamento
observado em humanos –, a equipe o ICe vai buscar entender a organização e o
funcionamento do cérebro. “Estes conhecimentos podem ser extremamente uteis
para entender o que acontece em pacientes humanos”, enfatiza Tarciso.
Como se
edita o DNA
O que tornou
a pesquisa de Tarciso Velho possível foi o descobrimento da enzima bacteriana
Cas9, capaz de editar o DNA. Esta enzima, que se utiliza de outra molécula,
chamada RNA guia, é usada por bactérias como defesa contra organismos
invasores. A grande inovação desta descoberta é que antes a modificação de
genes endógenos – aquele que já existe no genoma do animal-, de forma
específica, era viável apenas em camundongos e ratos.
Hoje, isso é
realizável em qualquer espécie animal a um baixo custo. O primeiro relato sobre
o sistema Cas9 foi registrado em 1987. Em 2010, foi demonstrado que esta enzima
corta o DNA de forma específica e, em 2012, foi evidenciado que a Cas9 usa o
RNA guia para determinar o lugar exato a ser cortado. Assim, os pesquisadores
do Laboratório de Neurogenética podem criar sequências de RNA guia
complementares aos genes de interesse e, dessa forma, direcionar a Cas9
especificamente para estes genes. Para isso, utilizam vetores virais para
manipular embriões ou células e tecidos específicos.
A partir
deste avanço, o projeto dos neurocientistas foi concebido com dois grandes
objetivos. O primeiro é criar as linhagens transgênicas de pássaros expressando
a enzima Cas9, que poderão ser utilizados por qualquer laboratório no mundo
interessado em manipular genes em mandarim-diamantes (ave canora). O segundo
objetivo é introduzir, separadamente nesses pássaros, as mesmas mutações que,
em humanos, estão associadas com autismo e gagueira persistente.
“Para isso,
vamos manipular embriões e introduzir genes expressando a Cas9 e RNAs guia
contra genes associados ao autismo. No caso da gagueira persistente, vamos
remover o gene endógeno e introduzir o gene humano defeituoso. Acredito que
consigamos desenvolver estes modelos no segundo e terceiro ano do projeto”,
disse Tarciso.
Modelo
animal
As aves
canoras aprendem a cantar de forma muito similar à maneira como aprendemos a
falar. Este é um dos motivos que levaram o pesquisador a escolher o
mandarim-diamante como modelo animal para sua pesquisa. Nativo da Austrália, o
pequeno passeriforme se adaptou muito bem ao clima do Brasil e hoje é bastante
comum em criatórios particulares. Com ciclo de vida curto, alcançando maturidade
sexual aos três meses de idade, o mandarim se adapta bem ao cativeiro, onde se
reproduz com grande facilidade.
Nos últimos
anos, várias abordagens genômicas revelaram polimorfismos em uma série de genes
ligados ao autismo e à gagueira persistente. No entanto, os modelos animais
existentes para o estudo de comunicação vocal em roedores como camundongos e
ratos, espécies mais utilizadas, não são ideais para estudar comportamentos
sociais e de comunicação.
É aí onde
entra a ave canora, já que a aquisição do canto em pássaros e da fala em
humanos compartilham várias características, dentre elas o período crítico para
o aprendizado, comum nos primeiros estágios da vida, a necessidade de audição
intacta, predisposição inata para aprender as vocalizações da própria espécie,
o aprendizado que depende de contingências sociais e os genes necessários para
o aprendizado do canto.
Além disso,
os pássaros canoros também têm um circuito dedicado ao aprendizado e à produção
de sinais vocais. Juntas, estas observações indicam que a aquisição da fala em
humanos e o aprendizado do canto em aves canoras envolvem vias moleculares
semelhantes. “Por isso, aves canoras podem ser um excelente modelo para estudar
a base neurológica de aspectos relacionados com a fala em autismo e gagueira
persistente, porque representam o sistema ideal para estudar como o cérebro de
vertebrados adquire e produz vocalizações aprendidas”, finaliza Tarciso Velho.
Fotos: Cícero de Oliveira
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