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segunda-feira, 21 de maio de 2018

DNA editado: Um sobrevoo para compreensão do autismo e da gagueira


Por José de Paiva Rebouças de Ascom Instituto do Cérebro/UFRN

A comunicação é uma função-chave na vida humana. Por meio dela, o homem expressa o pensamento, compreende e apreende as características e objetos do mundo. Uma das muitas formas de se comunicar é a comunicação verbal; contudo, muitas vezes, esta comunicação é afetada por distúrbios neurológicos do desenvolvimento, entre eles o transtorno do espectro autista (TEA) e a gagueira persistente.

Acredita-se que as deficiências de linguagem associadas a estes distúrbios podem acontecer devido a perturbações na formação das áreas cerebrais envolvidas na comunicação vocal. Pensando nisso, o laboratório de Neurogenética do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) está desenvolvendo um sistema modular de linhagens transgênicas de pássaros canoros a serem utilizados para modificar gênes endógenos como modelos genéticos para defeitos no aprendizado vocal.

O objetivo da pesquisa é entender o mal funcionamento do cérebro na presença de genes defeituosos associados com estes distúrbios. O neurocientista Tarciso Velho comanda o estudo, que vai introduzir mutações em genes associados à gagueira persistente e ao autismo nestes modelos animais, buscando entender o que acontece na formação e funcionamento dos circuitos cerebrais e quais as consequências para o comportamento vocal.

Um dos 65 jovens cientistas brasileiros selecionados em 2017 pelo Instituto Serrapilheira, primeira instituição privada do país dedicada exclusivamente ao fomento científico, para dar prosseguimento ao estudo, ele acredita que “no momento em que for possível entender o que está diferente no cérebro, durante a gagueira (e o autismo), podemos começar a pensar em como interferir para tentar melhorar a qualidade de vida das pessoas”.

Por enquanto, defeitos genéticos não são, com pouquíssimas exceções, corrigíveis em humanos. Porém, a pesquisa realizada no ICe-UFRN é básica e objetiva desenvolver conhecimento capaz de guiar o avanço de terapias para melhorar a qualidade de vida de pacientes com estes transtornos, e informar a pesquisa translacional, cuja característica busca promover a pesquisa interdisciplinar e acelerar a troca entre ciência básica e clínica, para assim aplicar o conhecimento científico na prática médica.

Na primeira fase do financiamento, o neurocientista terá um ano para gerar linhagens de pássaros transgênicos. Caso seja bem-sucedido na geração destes animais com comportamento alterado – que se aproxima dos defeitos de comportamento observado em humanos –, a equipe o ICe vai buscar entender a organização e o funcionamento do cérebro. “Estes conhecimentos podem ser extremamente uteis para entender o que acontece em pacientes humanos”, enfatiza Tarciso.

Como se edita o DNA

O que tornou a pesquisa de Tarciso Velho possível foi o descobrimento da enzima bacteriana Cas9, capaz de editar o DNA. Esta enzima, que se utiliza de outra molécula, chamada RNA guia, é usada por bactérias como defesa contra organismos invasores. A grande inovação desta descoberta é que antes a modificação de genes endógenos – aquele que já existe no genoma do animal-, de forma específica, era viável apenas em camundongos e ratos.

Hoje, isso é realizável em qualquer espécie animal a um baixo custo. O primeiro relato sobre o sistema Cas9 foi registrado em 1987. Em 2010, foi demonstrado que esta enzima corta o DNA de forma específica e, em 2012, foi evidenciado que a Cas9 usa o RNA guia para determinar o lugar exato a ser cortado. Assim, os pesquisadores do Laboratório de Neurogenética podem criar sequências de RNA guia complementares aos genes de interesse e, dessa forma, direcionar a Cas9 especificamente para estes genes. Para isso, utilizam vetores virais para manipular embriões ou células e tecidos específicos.

A partir deste avanço, o projeto dos neurocientistas foi concebido com dois grandes objetivos. O primeiro é criar as linhagens transgênicas de pássaros expressando a enzima Cas9, que poderão ser utilizados por qualquer laboratório no mundo interessado em manipular genes em mandarim-diamantes (ave canora). O segundo objetivo é introduzir, separadamente nesses pássaros, as mesmas mutações que, em humanos, estão associadas com autismo e gagueira persistente.

“Para isso, vamos manipular embriões e introduzir genes expressando a Cas9 e RNAs guia contra genes associados ao autismo. No caso da gagueira persistente, vamos remover o gene endógeno e introduzir o gene humano defeituoso. Acredito que consigamos desenvolver estes modelos no segundo e terceiro ano do projeto”, disse Tarciso.

Modelo animal

As aves canoras aprendem a cantar de forma muito similar à maneira como aprendemos a falar. Este é um dos motivos que levaram o pesquisador a escolher o mandarim-diamante como modelo animal para sua pesquisa. Nativo da Austrália, o pequeno passeriforme se adaptou muito bem ao clima do Brasil e hoje é bastante comum em criatórios particulares. Com ciclo de vida curto, alcançando maturidade sexual aos três meses de idade, o mandarim se adapta bem ao cativeiro, onde se reproduz com grande facilidade.

Nos últimos anos, várias abordagens genômicas revelaram polimorfismos em uma série de genes ligados ao autismo e à gagueira persistente. No entanto, os modelos animais existentes para o estudo de comunicação vocal em roedores como camundongos e ratos, espécies mais utilizadas, não são ideais para estudar comportamentos sociais e de comunicação.

É aí onde entra a ave canora, já que a aquisição do canto em pássaros e da fala em humanos compartilham várias características, dentre elas o período crítico para o aprendizado, comum nos primeiros estágios da vida, a necessidade de audição intacta, predisposição inata para aprender as vocalizações da própria espécie, o aprendizado que depende de contingências sociais e os genes necessários para o aprendizado do canto.

Além disso, os pássaros canoros também têm um circuito dedicado ao aprendizado e à produção de sinais vocais. Juntas, estas observações indicam que a aquisição da fala em humanos e o aprendizado do canto em aves canoras envolvem vias moleculares semelhantes. “Por isso, aves canoras podem ser um excelente modelo para estudar a base neurológica de aspectos relacionados com a fala em autismo e gagueira persistente, porque representam o sistema ideal para estudar como o cérebro de vertebrados adquire e produz vocalizações aprendidas”, finaliza Tarciso Velho.
Fotos: Cícero de Oliveira
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