Na terra
sertaneja castigada pela estiagem, a esperança resiste em meio ao cenário de
morte. O verde contrasta com galhos secos de plantas que agonizam pela falta de
água, até mesmo as mais resistentes, cansadas de lutar pela sobrevivência, após
a seca mais longa na história do Brasil, de 2012 a 2017. Persiste, porém, o
vegetal de nome científico Cnidoscolus quercifolius, popularmente conhecido
como faveleira, assim batizado por produzir uma semente leguminosa em forma de
favo.
Sua presença
no semiárido brasileiro acompanha a série histórica de secas no país, cujo
início remonta ao final do século 19, época marcada por um movimento que
buscava salvação diante da desigualdade social e das constantes intempéries
climáticas. Liderados pelo peregrino Antônio Conselheiro, os humildes
sertanejos construíram no interior da Bahia a cidade de Canudos, considerada
uma ameaça à recém-criada república brasileira. Com essa motivação, os
militares exterminaram a comunidade e, após cumprirem a missão, retornaram para
suas cidades de origem. Alguns deles se dirigiram para o Rio de Janeiro, onde,
sem salário, instalaram-se em construções improvisadas sobre o Morro da
Providência. O local começou a ser chamado de Morro da Favela, em alusão à
elevação próxima a Canudos, que ganhou esse nome pela presença abundante da
faveleira. Foi a partir daí que se atribuiu o termo ‘favela’ às comunidades
carentes informais, desenvolvidas sem infraestrutura urbana básica.
Apesar de
ter o nome famoso por esse fato histórico, a favela original ainda é pouco
conhecida pela população em geral. Para o homem do sertão, no entanto,
representa uma relevante fonte de sustento durante as grandes secas. No Rio
Grande do Norte, a planta faz parte da memória de pessoas como Salete Medeiros,
79 anos, moradora do município de São José do Seridó. Durante sua mocidade no
sítio dos pais, em Caicó, dona Salete recorda que nas épocas de escassez o pai
recorria à faveleira para alimentar os animais e a família.
As raízes
eram consumidas pelo gado e as folhas pelas ovelhas, enquanto a madeira da
árvore era transformada em cocho para os animais. A diversão das crianças, por
sua vez, era coletar as sementes de faveleira. “A gente colocava no pilão,
pisava, adicionava açúcar ou rapadura e comia a fuba. Era gostoso demais”,
lembra-se com nostalgia do gostinho da infância. As saudades da juventude foram
compartilhadas por dona Salete com os filhos, que cresceram escutando as
histórias da poderosa planta, à qual a experiente mãe recorria para tratar as
feridas das crianças.
O potencial
da faveleira despertou a curiosidade de Josimar Medeiros, filho de dona Salete,
que em 2006 decidiu plantar algumas mudas na propriedade da família, localizada
na zona rural de São José do Seridó, distante cerca de 250 quilômetros de Natal.
Professor de Geografia por formação e agricultor por experiência prática,
Josimar observou o crescimento das faveleiras e percebeu que, na verdade, a
espécie é mais importante do que se pensava.
Do campo
para a universidade
Da pequena
plantação, brotou a ideia do projeto de pesquisa elaborado por Josimar Medeiros
(foto) para o doutorado do Programa
de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (Prodema/UFRN). A tese, defendida em dezembro de 2017,
identificou a faveleira como espécie-chave cultural do bioma Caatinga e
destacou seu protagonismo na reabilitação de áreas desertificadas (AD) ou em
processo de desertificação (APD). Para chegar a essas conclusões, o pesquisador
realizou observações in loco, revisão
da literatura, entrevistas e plantio do vegetal em AD e APD, com auxílio de
agricultores familiares.
Na área em
processo de desertificação, constatou-se que em 2014 permaneciam vivas 65 das
82 mudas introduzidas por Josimar em 2009, mediante a técnica de uso de
embalagens plásticas. Para a área desertificada, os agricultores sugeriram usar
tanto as embalagens quanto a sementeira para o plantio das mudas, realizado em
2015. Um ano depois, das 60 mudas introduzidas com cada técnica, sobreviveram
respectivamente 56 e 46. Apesar de os números serem mais favoráveis para as
embalagens plásticas, a praticidade de transporte das sementeiras fez com que
esta técnica fosse replicada para plantio pela comunidade de São José do
Seridó, onde atualmente existem aproximadamente 10 hectares de faveleira.
“Mesmo sem
prevermos no projeto de doutorado, o vegetal foi disseminado entre os
agricultores e se tornou uma política pública do município. As mudas são
distribuídas gratuitamente pela prefeitura”, citou Josimar, quando recebeu a
equipe da ASCOM Reitoria em São José do Seridó. Fomos recepcionados na Escola
Estadual Raimundo Silvino, local de trabalho do professor, que desenvolve há
mais de 20 anos com seus alunos o plantio de mudas das mais variadas espécies –
inclusive a faveleira. Depois visitamos a comunidade rural de São Paulo, onde
reside dona Salete, cuja propriedade se tornou o campo da pesquisa acadêmica.
Lá conhecemos pessoalmente as faveleiras plantadas por Josimar no habitat
típico dessa espécie, classificada como xerófita pela adaptação ao clima
semiárido e desértico.
O irmão do
pesquisador, Josenilson Medeiros, foi um dos agricultores que auxiliaram no
cultivo da planta. Criador de gado, alimenta os animais com a vegetação
rasteira, conhecida popularmente como ‘babugem’, que desaparece nas épocas de
pouca chuva e aos poucos estava sumindo permanentemente pelo processo de
desertificação – fenômeno causado por efeitos climáticos e ações humanas. Sem
alternativa, ele precisava comprar alimento nas épocas de seca para manter a
criação, apesar do difícil retorno financeiro por meio da venda de leite. Após
a introdução da faveleira, a realidade apresentou transformações visíveis a
olho nu.
“Quando a
terra está desprotegida, a água vai causando erosão e leva embora a própria
babugem. Com a faveleira no terreno, o pasto e as sementes que caem no chão têm
onde se proteger, embaixo daquelas raízes, e conseguem se segurar. A planta
protege o solo, sem falar no que traz de bom para os animais”, explica
Josenilson, ao detalhar que as folhas caem das faveleiras e são consumidas pelo
gado justamente nas épocas sem chuva e pastagem. Segundo o agricultor, o
vegetal exige pouco trabalho: basta plantar no período correto e com a técnica
adequada, sem preocupações posteriores de manutenção.
Impacto
social
Presente na
vegetação do Rio Grande do Norte há pelo menos um século, a faveleira tem forte
relação com a sobrevivência do povo sertanejo. Essa foi a constatação de
Josimar após realizar entrevistas com 57 pessoas, com faixa etária de 30 a 100
anos, residentes em diferentes comunidades nas quais a planta é bem distribuída
na paisagem. O grupo apresentou utilidades da faveleira tanto para a
alimentação de animais quanto humana, além de ser explorada na medicina popular
e ter a madeira aproveitada para a confecção de objetos. De alto valor
nutritivo, a semente é a única parte consumida por homens e mulheres, que da
matéria-prima produzem a tradicional fuba, biscoitos, bolos e cocadas. Da mesma
semente, ainda é possível extrair leite e óleo, potenciais fontes de renda para
a população local.
Esses e
outros fatores levaram à inédita classificação da faveleira como espécie-chave
cultural do bioma Caatinga, pelo papel fundamental para a comunidade humana e a
manutenção de sua cultura. A nova pretensão do pesquisador é comprovar que a
planta também é espécie-chave ecológica, dada a importância da sua contribuição
para manter o ecossistema. “Durante as secas ela permanece viva, alimenta a
fauna e proporciona o crescimento de outras espécies debaixo da sua copa”,
alega.
As novas
descobertas e o resgate do uso da faveleira podem ter impacto significativo na
realidade sertaneja, cita a secretária adjunta de Educação a Distância da UFRN,
Ione Rodrigues Morais, que foi professora de Josimar Medeiros na época da
graduação no campus de Caicó. Entusiasta da pesquisa, a docente estimulou o
aluno a transformar as percepções sobre o vegetal em projeto de doutorado. “A
pesquisa possui grande relevância por levar em conta os elementos da realidade
do semiárido e tratar de uma espécie da própria Caatinga”, frisa Ione.
A proposta
foi abraçada pelo professor Magdi Ahmed Ibrahim Aloufa, orientador de Josimar,
com quem já publicou quatro artigos provenientes da pesquisa de doutorado. Para
o professor, as diversas utilidades práticas encontradas para a faveleira
atendem à proposta de aplicabilidade dos estudos desenvolvidos no Prodema,
programa concebido em formato de associação entre sete universidades
nordestinas. “Trabalho científico não serve apenas para engavetar, e sim para
ser aplicado”, defende Magdi, que considera essencial o surgimento de novas
pesquisas acadêmicas sobre a faveleira. [ASCOM
– Reitoria/UFRN]
Fotos: Cícero Oliveira
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