Por Araceli Sobreira, em Pedra do Sertão
Na época em que TV a cores era um luxo para poucos, em casa possuíamos uma Philco com um grande botão giratório de seleção de canais, outro para ajustar o a sintonia e mais outro para brilho e contraste. Era o luxo do luxo...O lugar exato da televisão era o espaço debaixo da escada, sob uma mesinha de madeira revestida de mogno, combinando ainda com o design do equipamento. Quase sempre na mesinha da TV e a na que ficava ao canto da parede, havia a combinação das toalhinhas de crochê, feitas pelas mãos delicadas de minha mãe, durante o horário de almoço do trabalho.
A programação tinha horário exato para começar, mas as manhãs eram recheadas de desenhos, muito desenhos...e outros programas infantis, como filmes, que iluminaram ou alteraram completamente a percepção de mundo de uma geração que cresceu entre 1973 e 1979. Minha mãe saía muito cedo para a empresa. Atravessava a cidade em uma lotação, geralmente lotada...e ia ouvindo o mesmo noticiário todos os dias.
Antes de ela sair, havia todo o protocolo, para se arrumar, pentear e ajustar a rotina do dia. Lembro-me bem do pó compacto (Max Factor!), cujo perfume ficava nas bochechas que iríamos beijar, antes da partida, sempre atrasada, para a firma, onde era contadora.
Não tínhamos vitrola (meu sonho de infância!) e o rádio era aquele tão comum à época: de pilha, azulzinho, com uma antena curta que pegava a frequência AM, numa chiadeira horrível...ouvir música era uma tarefa difícil para esta que se dirige ao leitor, nesta data de hoje.
Então, era parte da rotina da criança que um dia eu fui, ligar a TV, às seis da manhã, para ouvir MPB, principalmente samba, enquanto a programação, de fato, não começava. As faixas coloridas matizando a tela. Muitas vezes, ainda pegava o locutor anunciando o prefixo com as informações gerais do canal sintonizado. A partir de então, tínhamos uma hora exatamente de música. Muitas vezes, bossa nova, samba de raiz e os temas das novelas em voga.
Havia uma mania silenciosa entre as vizinhas: puxar a cortina, abrir a janela (para entrar o ar puro!), e varrer a calçada. Uma vigiava a outra, para ver quem punha os pés na calçada mais cedo...e eu, menina sapeca que era, morrendo de sono, geralmente era a primeira...e ainda tinha a pachorra de ir com a panela de café para mexer o pó na água quente, bem debaixo da janela, para que o cheiro espalhasse. Minha mãe que nada acompanhava dessa rotina, sentia o cheiro do café coado e já sabia que tudo estava pronto: leite fervido, café, pão e margarina. Quando muito um ovo frito. E lá ia ela, após beijar as filhas e o filho mais novo.
Eu ficava com a vassoura na mão, para limpar a sala, ou brincar de limpar a casa, porque o que fazia mesmo era aumentar o volume da TV, no último alcance, para ouvir música. Foi assim que cheguei a Dona Ivone Lara, pelas vozes de Maria Bethânia e Gal Costa, e a um dos melhores sambas que embalaram minhas rodopiadas, vassoura em punho, na simples sala da Vila Ré.
“Sonho meu, sonho meu, vai buscar quem mora longe, sonho meu. Vai mostrar essa saudade, sonho meu, com a sua liberdade...sonho meu...no meu céu a estrela guia se perdeu...”
Quando não eram Gal e Bethânia, era a voz de Bete Carvalho, João Nogueira, Clara Nunes e outras vozes do Samba...Vez por outra vinha Bethânea alertando que “eu estou aqui, que que há...foram me chamar...”
E é assim que hoje abri os olhos, procurando a estrela guia que foi morar longe... Salve, Dona Ivone Lara... a benção a “alguém [que] me avisou pra pisar nesse chão devagarinho”.
Foto reproduzida do vídeo
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