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segunda-feira, 16 de maio de 2016

Artigo descreve a solidão dos alpendres cheios de lembranças

Alpendre vazio

Por Fernando Antonio Bezerra*

Casa de fazenda - Foto: Nathália Diniz
Nos tempos do Seridó com muita gente nos sítios, de seca a inverno, as histórias verdadeiras, as narrativas imaginativas, as conversas sobre almas e aparições, o culto a personalidades, as pelejas e amuações, as notícias que chegavam, tudo, em síntese, era pauta das conversas nos alpendres, seja da frente, mais vistoso, seja na cozinha, como área de serviço e encontro.

A casa grande em duas águas, preferencialmente construída em um ponto mais alto, com a frente voltada para o nascente, é apresentada pelo alpendre que, no dizer dos arquitetos, é “uma extensão do telhado, ou tem sua própria cobertura independente, porém semelhante ao telhado. Pode ter apoio próprio ou sobre colunas”. É, em resumo, um típico espaço das casas construídas nas terras de clima mais quente, como os países tropicais. Para nós, o alpendre é muito mais que estrutura ou espaço edificado. O alpendre do sítio é relicário de momentos, lembranças e sentimentos.

No Seridó que a gente ama, do alpendre, em regra, se avista o curral, o armazém e, não raro, o açude. Aliás, em torno do açude se dá a vida econômica da propriedade rural e em torno do alpendre a vida social. É o lugar da tradição oral, do balanço da rede, do tamborete encostado na parede e até, em alguns lugares, da mesa com pano verde onde ganha quem presta atenção nas cartas que o outro entrega. O alpendre, na casa do sítio, é muito, mas, sem gente, se torna pouco.

O  povo do sítio foi indo embora carregado pelas secas, pelo desprestígio a quem trabalha no pesado, pela insegurança, pela solidão ou até mesmo pela ilusão de promessas feitas de vida melhor na rua. Antes, mesmo os filhos na cidade, a família se reunia de tempos em tempos e contagiavam o alpendre com a alegria do reencontro e com a abundância de comidas tradicionais que, infelizmente, estão deixando as mesas das casas porque o aprendizado da boa gastronomia sertaneja alcança, a cada geração, menos pessoas. Dos doces a comidas de milho; da galinha tratada no chiqueiro à costura das buchadas; da paçoca no pilão ao café coado no pano, enfim, pelas mãos prendadas – sobretudo das mulheres – eram preparados nas próprias casas os mais variados pratos e da cozinha vinha o grito esperado no alpendre: o almoço está na mesa!

E a noite cedo, depois da ceia, ainda no alpendre, eram ouvidas as histórias das famílias, dos vaqueiros, da pega do boi, da caça às onças, do bote da cobra no açude e outras mais “estórias de trancoso, do cão, dos tempos em que os bichos falavam”, conforme escreveram, no livro “Seridó – Sec. XIX, Fazenda & Livros” os geniais Padre João Medeiros Filho e Oswaldo Lamartine de Faria, acrescentando: “Quase todas essas contadeiras de estórias eram empregadas, donas de rico repertório e arte representativa de vozes, inflexões e gestos que faziam o hipnótico encanto da meninada. Algumas, de tão célebres, eram convocadas para temporadas nessa ou naquela fazenda. Livros-vivos de estórias de um mundo que se foi...”

Mundo também que tinha seus males e pragas, mas de aflorada solidariedade entre as pessoas. Precisamos lembrar um pouco mais da cultura que foi berço de pobres e ricos do Seridó que nos antecedeu. Resgatar um pouco do que é possível e daquilo que é bom. Existem resistentes, mas, infelizmente, a maioria dos alpendres - de domingo a domingo - permanece sozinho. Com o consumismo além da conta que se pode pagar; com a mudança de costumes onde o resultado se espera antes do esforço; com a preferência desordenada pela urbanização, seus danos previstos e tudo o mais que todos sabem, o alpendre está vazio, muitas vezes com o telhado arriado pela saudade, cheio de lembranças e seco de vida.

*Fernando Antonio Bezerra é potiguar do Seridó com post na página do Bar de Ferreirinha 
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