Por Albimar Furtado*
Jornalista ▶ albimar@superig.com.br
Vi o espetáculo da
cheia, da sangria, da alegria, o desfilar de uma população inteira a caminho da
barragem para ver a água se espraiar até não caber mais em sua reserva e
despencar em queda livre, depois de vencer a parede exuberante, e seguir seu
caminho pelo chão do Seridó. Fui testemunha deste espetáculo de felicidade de
sertanejos em volta do Gargalheira, nas serras do Acari. A natureza fez um
corte nesse cenário e hoje a história é outra. Na seca emergem rostos
reveladores de incertezas. Restou a fé. Fernando Antônio Bezerra que conhece os
caminhos e a história do Seridó mostra, em texto que publicamos neste espaço, a
imagem forte e triste de “...ver o Gargalheira com suas entranhas expostas” e o
drama que isto representa para uma população dependente da velha barragem.
Saudação ao Gargalheira
A seca vai levando quase
tudo... As povoações do Seridó que se estabeleceram em torno da água e da fé,
vão ficando somente com a esperança, fincada na crença, que a misericórdia de
Deus é maior que a justiça.
Nos últimos dias a mídia
vem apresentando o fim das águas do Gargalheira, um martírio assistido por
muitos e de tristeza contagiante. Na terra do Acari, onde está chantada a raiz
de milhares de seridoenses, o colosso Gargalheira proporciona, em anos de
inverno, a mais bonita cena de transbordamento da generosidade das águas. O que
um dia foi abundante e transbordou, falta para salvar os peixes, acalentar a
fauna, respingar na flora e alimentar a vida do homem. Faz muita falta a todos
nós a água que falta ao Gargalheira!
O Açude inicialmente
denominado Gargalheira – assim escrito nos primeiros relatórios do Governo
Federal e também assim como o Mestre Paulo Balá a ele se refere em “Cartas dos
Sertões do Seridó” - foi uma das respostas às grandes secas do final do século
XIX e início do século XX. As autoridades com algumas importantes obras e
alguns invernos encarrilhados, ao que parece, perderam o ímpeto do século
passado quando se debruçavam com maior interesse pelos assuntos do sertão. Sem
querer aprofundar a querela, vamos aceitar que eles se entreteram com outros
assuntos e não avaliaram bem o aumento da população, as mudanças de costumes e
as inquietações da natureza.
Aliás, acho que também
nós que somos e vivemos no Seridó, de alguma forma, devemos nos incluir nesse
rol, aceitar que “engolimos mosca” e assumirmos novas responsabilidades com
alternativas viáveis de convivência com a estiagem e de defesa do meio
ambiente. Muito mais podemos fazer e cobrar! “Um crime contra a natureza é um
crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus”, sentencia o Patriarca
Bartolomeu de Constantinopla.
Por oportuno, Adriano
Wagner da Silva, discorrendo sobre “Engenharia nos sertões nordestinos: o
Gargalheiras, a Barragem Marechal Dutra e a comunidade de Acari, 1909-1958”
para o Programa de Pós-Graduação em História da UFRN sustenta que o
planejamento do passado ia além da construção de açudes: “Após as secas de
1877, Comissões científicas, em especial a Comissão de Açudes e Irrigação
(1907), penetrariam o Seridó passando a fazer estudos sobre a fauna e a flora, o solo, a hidrografia, índice
pluviométrico, o clima, entre outros elementos, de forma semelhante ao que era
feito em outras áreas no Nordeste. (...) Os engenheiros da Inspetoria logo
adentraram o sertão potiguar a estudá-lo, projetar e edificar obras que
transformariam a realidade geográfica e social local. Dentro do conjunto de
políticas de implantação de obras públicas federais dar-se-ia ênfase na
construção de açudes (públicos e privados), canais de irrigação, de barragens e
de estradas (de ferro, rodagem e carroçáveis).”
Sobre o Gargalheira,
mencionando uma pesquisa da Professora Hilda Frassinete, o imortal acariense
Jesus de Rita de Miúdo, pesquisou e publicou uma síntese da história do Açude
onde lembra que toda caminhada somente começa com o primeiro passo: “Atendendo
aos acarienses, Silvino Bezerra de Araújo Galvão, Cypriano Bezerra Galvão Santa
Rosa, Joaquim Servita Pereira de Brito, Antônio Basílio de Araújo, Padre
Francisco Coelho de Albuquerque, entre outros, foram feitos os primeiros estudos
da construção da barragem e também a primeira planta topográfica do
Gargalheiras”. A iniciativa foi em 1909. Entre idas e vindas, com a destacada
atuação de muitos, dentre as quais, os potiguares José Gonçalves Pires de
Medeiros e Café Filho, somente em 29 de outubro de 1956 foi iniciada a
concretagem da parede. “Em 29 de outubro de 1958 é dada concluída. Neste dia a
Prefeitura de Acari, ofereceu um grande almoço aos empregados da obra. Em 27 de
abril de 1959 é realizada a Festa Oficial de Encerramento, exatamente 50 anos
depois de feita a 1ª Planta Topográfica do Açude.”
Acari tem no Açude
Gargalheira, posteriormente denominado Marechal Dutra, um marco divisor de suas
águas e de sua própria história. Um poema, de concreto, emoldurado pela
natureza.
Não é fácil para o
sertanejo encontrar o Gargalheira com suas entranhas expostas. Ele é mais que
um simples açude. Ele é uma referência de vida e beleza. – Que a cena, antes
inimaginável da morte de suas águas, seja apenas prenúncio de uma breve
dormitação e que logo nova vida o abasteça. A ele e a todos nós!
*Texto publicado na coluna do jornalista no Novo Jornal
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