O poeta Manoel Vale
Por Luiz Gonzaga Cortez*
O poeta Manoel de Araújo
Vale, falecido há 30 anos (9 de janeiro de 1984), foi uma das maiores figuras
humanas no meio da intelectualidade natalense dos anos sessenta/setenta.
Anti-conservador, anti-burguês, anti-acadêmico e anti-capitalista - anti-tudo
que representasse injustiça, miséria, exploração, ignorância e sacanagens mil
da sociedade decadente e consumista - Manoelsinho, ex-aluno do Colégio Estadual
do Atheneu Norte-rio-grandense, onde fez os primeiros ensaios de estudante
militante contestador e reivindicador, foi um rapaz pobre que veio de Caicó
estudar na capital e aqui desenvolveu o seu talento literário e a sua verve
poética.
Baixinho, estrábico,
fala mansa, Manoelsinho foi um homem bom, sem as malícias e defeitos
pequeno-burgueses de que somos possuídos. Com a sua aparência desleixada, sua
mochila surrada e cheia de livros, cadernos e papéis, ele gostava de baixar nos
bares e recantos mais díspares de Natal, nos tempos em que se andava a pé da
Cidade Alta ao Bar Postinho, na praia do Meio; ou de Nova Descoberta,
Tirol e Alecrim para os becos sujos e
escuros da Ribeira velha de guerra, a qualquer hora da madrugada. Só ou
acompanhado, biritado ou não. Sem lenço e sem documento. No bar, no boteco, no
boisinho ou no cabaré, era capaz de escrever lindos poemas.
Amava a vida e a
humanidade. Amava todos: os operários, as prostitutas, os intelectuais e os
políticos comprometidos com a redemocratização do Brasil (Movimento Pró
Anistia), os cineastas e os cinéfilos (tinha muitos amigos no Cine Clube Tirol,
de Natal, dentre eles, Palocha e Juliano Siqueira) e o povo oprimido.
Participou das movimentações
em favor da Anistia, 1979, e das Diretas Já, em 1984, mas não chegou a assistir
a eleição de Tancredo Neves por causa do "Momento alvissareiro da fatal
viagem", nome de um seus dos poemas
do único livro que tenho de Manoel Vale ( Viver a Vida, Natal, 1978).
Lembro-me que participou
de um comício (com a sua bolsa a tiracolo) que houve no centro da cidade, na
avenida Deodoro, esquina com a rua João Pessoa, em favor da Anistia, fato
documentado por uma fotografia que boiou na redação do Diário de Natal, onde
ingressei no finalzinho de 1978, e recentemente publicada no livro Anistia - 20
anos depois, editado pelo Sindicato dos Bancários.
Estou me lembrando de
Manoelsinho, não somente devido ao esquecimento do seu nome e da sua poesia,
mas porque no dia 18 vindouro fará 21 anos que me encontrei com ele numa fila
da agência Ribeira do Banco do Brasil, após vários anos sem vê-lo, e, depois de
um afetuoso abraço, me deu o seu livro "Viver a Vida (Poemas)", com a
seguinte dedicatória: "Ao amigo, Gonzaga Cortez, que os tempos bons do
velho Atheneu, tempos de luta e de refregas memoráveis de vitórias gerais e
algumas derrotas pessoais sejam o alicerce da luta maior, da grande luta em
busca de um Brasil mais fraterno, mais solidário e mais humano, para nós que
fazemos a Nação rica e, infelizmente, mais consubstancialmente, pelo total de
habitantes, sofrida e explorada.
Natal (Rn), 18.10.79.
Manoel Vale".
Eu estudei dois anos no
Atheneu, no inicio da década de 70, mas já tinha andado por lá e adjacências entre 1966/68, nas
campanhas estudantis e contra a Guerra do Vietnã, distribuindo panfletos
mimeografados que eram passados por Juliano Siqueira. Conheci Manoelsinho em Natal, nos bares, nas
esquinas, no café São Luiz e no velho Atheneu.
Ele escreveu poemas de
fortes críticas sociais. Atualíssimo, "Pranto Sentido" é um deles:
"Quero sentir e
cantar,/ mas o tempo não dá,/o mundo não deixa: / só há tempo para a queixa/ da
pobreza,/ que vive a mendigar./ Quero cantar e não chorar,/ mas agora não dá,/
neste mundo desajustado,/ espoliado,/ onde impera/ só a miséria. / Os pobres
pedem comida,/ pois não têm comer na barriga!/ E os governantes/ não dão
ouvidos/ a esses pobres mendigos De
alimentos e de justiça./ Justiça! ... Justiça! .../ Para este mísero mundo
cão,/ onde aos pobres falta o pão/ e aos criminosos a prisão".
Manoelsinho também
deixou um livro de poesia inédito, cujos originais deveriam ser resgatados pelo
Sindicato dos Bancários do RN.
Manoel de Araújo Vale,
que deveria ser nome de rua de Natal e de Caicó, foi funcionário do Banco do
Brasil e contraiu malária numa cidade da região Norte do Brasil, antes de 1980,
e, em conseqüência, tornou-se cardíaco (coração grande), vindo a falecer em
1984, já aposentado por invalidez.
O poeta e companheiro de
trabalho (e camarada ideológico), Horácio Paiva, escreveu um artigo a seu
respeito ("Manoel de Araújo Vale: presente") na Tribuna do Norte de
10 de fevereiro de 1985, mas a sua vida e a obra poética, o homem que sonhava
com o real e o imaginário," que transpunha para a poesia as suas
concepções dialéticas, concepções que o levaram a assumir dignamente a vida,
viver a vida", a lutar pela
democracia e o socialismo, precisam ser resgatadas.
Pois é, temos na direção
do Jornal de Hoje, um jornalista natural de Caicó, Aluizio Lacerda, que deve
ter conhecido Manoelsinho, com quem deveríamos contar na luta para torná-lo
nome de rua ou pracinha (ou será que já denominaram alguma artéria com o seu
nome?), em homenagem ao grande poeta dos excluídos. Na festa dos 180 anos de
fundação do Atheneu Norte-rio-grandense, ocorrido na manhã de 03.02.2014,
ninguém se lembrou do poeta caicoense e líder estudantil. Os jovens estudantes
que estavam lá só faziam barulho, conversando e rindo até que a secretária de
educação do Estado, Betânia Ramalho, pediu silêncio para que todos ouvissem os
oradores, inclusive ela. Betânia discursou e deu o seu recado.
*Luiz Gonzaga Cortez é jornalista.
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