Você já leu
isso antes: a vida é uma viagem. Mas não é sobre um chavão que eu gostaria de
conversar. Viver, de fato, é um contínuo caminhar e desvendar paisagens. Mas o
ponto não é exatamente o caminhar e sim como caminhamos, o que inclui a maneira
como construímos internamente caminhos e cenários a partir de um olhar e de um
propósito.
A vida pode
ser uma viagem, mas as cores, a profundidade, os brilhos e contrastes dizem
respeito ao modo como nos movemos sobre a Terra.
É possível
considerar nossas viagens de uma perspectiva espiritual. O filósofo e teólogo
hesicasta Jean-Yves Leloup aponta-nos com precisão: existe uma maneira de
caminhar que nos faz turistas, outra que nos leva a ser andarilhos e outra
ainda que nos torna peregrinos. Talvez seria isso uma espécie de espiral
evolucionista do caminhante, mas não se trata de contrapor uma maneira à outra.
O turista,
diz Leloup, é aquele que caminha sobre a crosta do planeta. Permanece na avidez
por quilometragem, no consumo de prazeres e no contato superficial com
paisagens, situações e pessoas. O andarilho aprofunda a experiência do caminhar e busca a seiva,
almeja entrar no movimento do universo e tornar-se pleno com os odores da
natureza, as mensagens da vida. Caminhar como peregrino exige um refinamento
maior, na intenção de se estar próximo do sopro, da essência que está na seiva
e é o sustentáculo último da seiva, da árvore, da crosta.
Um estágio
pode levar ao outro para, no final, percebermos a realidade de que caminhamos
sobre uma terra que se torna sagrada ou profana a partir da qualidade que
imprimimos ao nosso caminhar. A viagem é plena quando nos leva para dentro,
quando desvela nossas paisagens
internas, quando nos coloca diante da Presença.
É ainda
Leloup quem nos recorda que a sabedoria de Lao Tsé pode ser aplicada aos nossos
ímpetos viajeiros. Segundo o sábio do Tao, podemos dar a volta ao mundo sem dar
um único passo para fora de nós. Ou seja, podemos levar conosco o mesmo olhar,
as mesmas projeções, os mesmos preconceitos e, assim, nada vermos.
Se isso
acontece, certamente, falta-nos a inspiração
de Carlos Castañeda para a viagem contínua da vida: “Não importa o
caminho, importa se esse caminho tem um coração”. Falta-nos ainda a abertura
surgerida pelo Eclesiastes: “Vai onde o teu coração te leva”. O olhar e o
propósito devem corresponder ao nosso coração, nossa aspiração mais profunda,
não a padrões aprisionantes. Caminhar sem coração é seguir um caminho que nos é
imposto, do qual não conseguimos desfrutar.
Talvez por
isso, quem sabe, deixo-me banhar pela suavidade dessas reflexões, enquanto
aguardo o embarque para Roma, no aeroporto de Guarulhos, quando o pragmatismo e
o próprio instinto poderiam angustiar-me neste momento em que a terra treme na Itália central - onde peregrinarei, solitário, pelos
caminhos de Francisco de Assis -, hotéis desabam e avalanches soterram
turistas.
Meu coração
diz: vá! Não há lógica: vá! Só há esperança:
vou e espero voltar.
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