O primeiro DVD de Dudé
Anchieta Fernandes*
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Foto: Divulgação
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Em uma próxima vaga na
Academia Norte-riograndense de Letras, bem que poderia ser eleito por
unanimidade – mesmo sem ele próprio ter se candidatado – o compositor, cantor,
humorista e tão poeta nas letras de suas músicas Dudé Viana (José Viana Ramalho
ou JoséFilho). Vocalista e instrumentista talentoso, este caraubense já fez
shows em nosso Estado, em João Pessoa, Recife, Fortaleza, no Rio de Janeiro, no
norte do país e, internacionalmente, no Chile.
Antes da era dos CDs,
gravou o compacto duplo “Seca no Sertão” (1980) e o LP “Embaixo das Estrelas”
(1987). O seu primeiro CD foi “Violas e Cantigas” , gravado em 1997. Depois,
gravou o CD “Acredito em Você”.
Em 2013, lançou o seu
primeiro DVD, uma obra primorosa, linda pelas letras e músicas, com alguns
toques informativos sobre a vida do músico/poeta, e sobre a terra
norte-riograndense, e com o título “O andarilho das canções Dudé Viana &
amigos”. É bom ressaltar que as imagens do dvd destacam a beleza da paisagem
norte-riograndense (praias, o Morro do Careca, a Serra do Lima, a vegetação
atual do sítio Poço Redondo, do município de Caraúbas, onde ele nasceu),
fixando também certos aspectos dos costumes
tradicionais do povo, como a procissão dos vaqueiros na Festa de São Sebastião,
padroeiro da paróquia de Caraúbas.
Mas é bom lembrar também
que este é um dvd não exageradamente regional, pois, gravado no Rio Grande do
Norte, em Amapá, no Rio de Janeiro e em Brasília, tem títulos como “Morena de
Macapá” (parceria com Paulo Gurgel) e “Brasília, a Menina” (parceria com
Roberto Homem). É um dvd brasileiro, acima de tudo.
Consequentemente, é bom
ouvi-lo e vê-lo, prestar atenção às letras (para apreciá-las como puros poemas,
sejam as do próprio Dudé, como por exemplo “Olhos de Cristal”; ou as das
parcerias com bons poetas, como “Ah! Se eu fosse um poeta”, com Salete Pimenta
Tavares, ou “O Pilão Sertanejo”, com o poeta e folclorista Deífilo Gurgel.
Podemos apreciar na obra
musical de Dudé o ecletismo. Ele é cósmico em “O Brilho das Estrelas” (“se todo
mundo olhasse as estrelas/não perderia a fé no criador”) e romântico em “Olhos
de Cristal”(“moça bonita/dos olhos de cristal/menina do Leblon/te levo pra
Natal/nas dunas coloridas/da praia de Tibau/a gente faz amor/no imenso
coqueiral”); mas também é erótico em “O andarilho e Clarisse”(“ela me
provocava/tirando a roupa e deixando no chão/passei a beijá-la num ritmo
frenético”), além de apresentar a filosofia de auto-ajuda em “Toque a Vida”
(“Toque a vida, viva/viva o amor e saiba porque/viver é se soltar e sair na
chuva”).
Uma coisa a ressaltar
também neste primeiro disco/imagem e som na tecnologia dvd (sigla de digital
vídeo disc, tecnologia de comunicação em imagem e som inventada nos Estados
Unidos, no começo do século 21)de Dudé é a homenagem a certos profissionais da
sociedade nordestina: vaqueiros (“Nas rédeas do vaqueiro”), a catadora de
mangaba (“Xote da Mangaba”), a piladora de pilão (“O pilão sertanejo”), o
jangadeiro (“Canção do jangadeiro”), o violeiro (“Cantoria na Mata”). Aliás, como
disse Roberto Homem, Dudé vem de uma linhagem de cantores inspirados em
violeiros e cantadores, como Elomar, Vital Farias, Xangai e outros.
Não por acaso, o cenário
da faixa “O poeta do povo” aproveita as telas ilustradas como cenário de fundo
(por trás dos músicos), utilizando desenhos calcados em capas de folhetos de
cordel. Aliás, os cinegrafistas filmadores das imagens exteriores são gente que
sabe captar muito bem a beleza do meio ambiente que os cantadores de cordel
também vivem e cantam. O trabalho de câmera de Cruzeiro Vídeo é muito bom. Como
também o é o trabalho de edição a cargo de Vlademir Almeida (um exemplo claro
de sua inteligência e criatividade: o movimento de sobreposições alternativas
de planos na apresentação da música “Seca no Sertão”).
Em contraste, o que
dizer do jeito de cantar de Dudé? Ele tem uma voz muito boa, harmônica,
melodiosa (sai-se até muito bem no vocalizo de antes e depois de cantar a letra
de “A Ponte”, que é um poema de Zila Mamede); sabe encadear a harmonia
estendendo-a à procura do encaixe modal à letra de “Ah!se eu fosse um poeta”,
que é um poema de Salete Pimenta Tavares não feito originalmente para ser
musicado. Mas, justamente por se inspirar no cantador de cordel, Dudé não
desenvolve muito o cromatismo da escala tonal, fica muito na fronteira do meio
tom, entre o som agudo e o grave. Também não tem muita versatilidade no que diz
respeito ao comportamento corporal de palco.
Ele é muito diferente de
Jair Rodrigues, que deixava os câmera-men dos shows de televisão doidos,
tontos, sem saber como acompanharem a figura do cantor para captar a sua
imagem, ele correndo, deslisando de um lado para o outro do palco, balançando a
cabeça, saltando, mexendo os braços, fazendo ginástica, plantando bananeira.
Dudé é muito parado. Talvez seja o estilo imutável dele. Mas, por exemplo, na
apresentação da música “Festa na casa dos Carneiros”, ele poderia ter
aproveitado todas aquelas pessoas que se banhavam na piscina do Olho D’Água Park
Hotel, e puxado uma verdadeira ciranda festiva, todos cantando e pulando, com
alegria no rosto, acompanhando o cantor.
Mas, afinal o dvd é uma
antologia de shows, e vale a pena destacar o melhor destes shows. É
emocionante, por exemplo, a “Canção para Tico da Costa”, homenagem de Dudé e
Nildo Santos ao cantor areia-branquense falecido em 2009. Na canção, a
belíssima voz de Camila Salinas faz parceria, cheia de ternura, com o cantor, que
ao final deixa no ar um belíssimo improviso com o seu violão. Emocionante
também é, na faixa 18, uma parte falada, não cantada: antes de Dudé cantar a
“Canção do Jangadeiro”, conversa com o pescador Cássio Carlos de Lima, que
narra a triste história do seu pai, que morrera à deriva, em cima de uma
jangada.
No dvd, a característica
de ser aquilo, ter aquela simpática alcunha que Tarcísio Gurgel lhe botou (“o
andarilho das canções”), fez Dudé ser um ótimo documentarista visual de
peculiaridades de diversas regiões brasileiras, seja, por exemplo, nos estilos
arquitetônicos de templos religiosos (v. a propósito a fachada quase barroca da
Igreja Matriz de Caraúbas, e a fachada modernista, niemayeriana da Catedral de
Brasília), ou nas tipicidades do vestuário (o vestuário do vaqueiro nordestino,
marcado pela utilização da indústria do couro; ou os trajes de cores fortes das
apresentações do Grupo de Marabaixo Tia Sinhá, de Macapá, Amapá).
Além destes aspectos
arquitetônicos e de vestuário, tem a ilustração dramática de uma lenda indígena
nordestina, a partir de um poema de Aucides Sales: “Cantofa e Jandi”. É uma
peça artística no gênero romance de cordel, de que fala Câmara Cascudo no
“Dicionário do Folclore Brasileiro”. “Foram poemas feitos para o canto nas
cortes e saraus aristocráticos, e não a poesia democrática e vulgar, feita para
o povo. No século XVI, a recriação foi um processo de acomodação ao gênio
popular. ”Interessante observar como temos verdadeiras vocações para a
interpretação. Lúcia Tavares no papel da índia Cantofa, e Ladja Laysla no papel
de sua neta, a mocinha índia Jandi, trabalharam muito bem.
A equipe de produção dos
shows e do dvd não trabalhou muito efeitos especiais. Apenas mostrou ser muito
eficiente o efeito da fumaça em “Nas asas da Tam”, construindo imagens que
lembram nuvens desgarradas, em formatos que os aviões da empresa aérea
atravessam, transportando passageiros do Nordeste para o Norte, ou para o Sul,
e vice-versa na viagem de volta. Dentre eles, alguns que esperaram Dudé para
fazerem acompanhamento ao cantor e instrumentista; alguns, aliás, excelentes
músicos, como o sanfoneiro caraubense Caçula Benevides, o conjunto jovem
Meirinhos do Forró, outro violonista que é Raimundo Amoedo, acompanhando Dudé
no show em Mar. Hermes.
O dvd “O andarilho das
canções Dudé Viana & amigos” é um objeto de arte enriquecido por diversos
fatores de valoração. As letras das músicas divulgam a poética do humano, desde
o preâmbulo, antes mesmo do filme começar a se desenvolver faixa por faixa. Com
a imagem do cantor parada, sobre palavras indicativas do roteiro do filme
(principalmente as cidades de Natal, Macapá, Rio de Janeiro e Brasília), se
ouve a voz do cantor (que foi vítima de um infeliz erro judiciário, passando
mais de um ano preso sem culpa), cantando um hino alegre à sua vitória na
liberdade: “Voa minha liberdade/não existe mais prisão/depois do bem da vida/o
bem maior é a liberdade.”
É um dvd muito
detalhista, inclusive na densidade da identidade familiar, aparecendo
fotograficamente familiares de Dudé, contando-se o seu pai vaqueiro José Daniel
Carneiro, mãe, irmãos, sobrinhos, primos, tios, toda uma constelação familiar.
Não é algo negativo não. É até uma espécie de colaboração informativa. Afinal,
Dudé já enobrece o nome familiar com sua arte, ao lado da Condessa Laly
Carneiro, do padre Benevides (que foi superior dos jesuítas na região), do
vereador Antonino etc. Me lembrou o dvd que o astro da música country americano
Willye Nelson gravou, em 2001, justamente com familiares na capa.
Muitos outros elementos
valorativos podem se encontrar neste bonito dvd tão potiguar, tão criativamente
potiguar. No passar das imagens, o exílio do nosso olhar, de filhos do sertão
obrigados a contemplar a seca e dura paisagem de prédios, pontes altas e
passarelas cheias de gente agoniada e preocupada com os problemas urbanos, se
reconcilia com a também seca mas suave ao nosso coração paisagem do sertão, da
galharia da caatinga, e dos grandes pátios das fazendas onde se realizavam as
vaquejadas. No comunicar das letras, a força das mensagens (“Por que não paras,
motosserras/e as queimadas nas florestas”). E a poesia pura (“passarinhos
construtores, castores”).
Finalmente, uma última
coisa a elogiar no dvd é a apresentação dos créditos, ao final, quando os nomes
vão subindo na tela bem devagarinho, dando tempo ao espectador ler tudo, e não
como ocorre em certos dvds ou até em filmes hollywoodianos, num total
desrespeito à mostragem dos nomes. Aqui ficamos sabendo que as tão bonitas
imagens deste dvd foram devidas à competência de gente como Thiago Praxedes
Amorim, Josiene Santos, Roque de Sá etc. Felicidade aqui no sertão tem nomes e
nomes, mas é principalmente Dudé Viana. O andarilho das canções. Mostrando
poesia por diversos cantos do país, sob o olhar atento de Cruzeiro Vídeo.
*Anchieta Fernandes, poeta, escritor, pesquisador, jornalista, com atuação
em jornais da capital, estudioso de artes visuais, sobretudo do cinema e
histórias em quadrinhos.
- Com post na página online
do Jornal Zona Sul
- Saiba aqui maissobre o lançamento do DVD “O Andarilho das Canções Dudé Viana e amigos”
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