Por Albimar Furtado*
Jornalista ▶ albimar@superig.com.br
Garrincha foi agora lembrado pelos 30 anos de sua
morte. Merecidas homenagens. Não vou escrever sobre aquele que foi a alegria do
povo. Tenho não cacife para tal. Mas trago luz a este espaço transcrevendo um
dos mais bonitos textos sobre o craque do Botafogo, de autoria de outro gênio,
este da palavra, Armando Nogueira, publicado em março de 1978, antes da morte
do ídolo.
“Driblar, tendo as pernas tão tortas –e driblar como
ninguém- eis um mistério de Garrincha que eu não ouso explicar;
Driblar, tendo uma perna mais curta que a outra –e
driblar como ninguém- eis um mistério de Garrincha que tu não ousas explicar;
Driblar, tendo um desvio na espinha dorsal –e
driblar como ninguém- eis um mistério de Garrincha que ele não ousa explicar;
Driblar, tendo a bacia deslocada no sentido oposto
ao desalinho das pernas –e driblar como ninguém- eis um mistério de Garrincha
que nós não ousamos explicar;
Driblar, quase sempre para o mesmo lado, repetindo o
gesto mil vezes para mil vezes afirmar-se negando o próprio conceito de drible
–eis um mistério de Garrincha que não ousais explicar;
Driblar, como já o vi driblar, tendo o ombro
enfaixado, o braço imobilizado, a clavícula quase quebrada –e driblar como
ninguém- eis um mistério de Garrincha que eles não ousam explicar;
Driblar, e driblar com tanta graça e naturalidade-
eis um mistério de Garrincha que só Deus pode explicar.
O nosso Mané aqui chegou duas vezes sob a proteção
de batedores, hinos e bandeiras, herói de duas guerras em que conquistou o
mundo sem matar ninguém, só brincando de gato-e-rato: os computadores
soviéticos, tão certeiros nos rumos da Lua, tão desorientados pelo drible
angelical do guerrilheiro. Drible que todos beijaríamos, a começar pelo mestre
Drummond, ainda que beijando o gesto fosse preciso beijar-lhe os pés. Porque,
correndo pelos campos ele era um anjo de pernas tortas mas no caminho certo, no
caminho da alegria mais pura que eleva o homem as portas do céu.
Vinha cá na intermediária, recolhia a bola:
velocidade zero. Num segundo, dava-se o arranque, um metro adiante aquela
explosão muscular lançava-o no espaço com a leveza de um passarinho: se
quizesse voar, voava, mas não era preciso tanto para chegar ao ninho (não
existe uma história de aninhá-la no fundo das redes?). Bastava frear o corpo,
arrancar de novo pela direita -, e lá se ia por terra o equilíbrio universal
dos laterais. Saibam os matemáticos que muitas vezes ele parecia deixar no meio
do caminho, às quedas, seu próprio centro de gravidade: e continuava, em pé,
pela direita, fluente como uma queda d’água.
Lançado no processo do drible transfigurava-se: era
Chaplin, esculpindo no vento uma sucessão maravilhosa de gestos cômicos; era o
toureiro inventando verônicas que a multidão saudava cantando olé; era São
Francisco de Assis, engrandecido na humildade com que sofria os pontapés do
desespero. Aquele drible pela direita que era a negação do drible porque é
sabido de todos, em todos os campos do mundo, fez milionários sem conta.
Chegava à linha de fundo, os beques cercando a área, o espaço minguado... um
metro, meio metro, “ele não tem mais campo, vou dar o carrinho agora”. Amarga
ilusão: para um drible dele, superfície de um lenço era um latifúndio.
E o centro, meia distância, rasteiro ou aéreo, punha
a bola aos pés do artilheiro. Individualista, sinônimo de egoísta: não na
cartilha dele que fazia do drible a alegria do povo e do passe a glória do
companheiro.
Tudo isso foi ontem.
Quem sabe dele, hoje?
Anda por aí, acorrentado, chutando, talvez de
sandálias, a bola de ferro da nossa indiferença.
*Texto publicado na coluna
do jornalista no NOVO JORNAL
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