Sábado, agora, em Cajazeiras, me encontrei com o
mestre Ancelmo Saldanha. Ele vinha das bandas da Serra do João do Vale, terras
de seus antepassados que se espalham derna de Belém do Brejo do Cruz, na
Paraíba, a Janduís, do lado de cá, passando por Paraú e Campo Grande. Eu ia no
rumo de Queimadas. Fazia uns cinco anos do nosso último encontro, acho que no
meio da feira de São Paulo do Potengi. Cajazeiras é um lugarejo, cortado pela
BR-226, coisa de uns seis quilômetros da Reta Tabajara, de quem vai na direção
de Santa Cruz, Currais Novos, Seridó. Pertence ao município de Macaíba, bem
próximo às divisas com São Pedro e Bom Jesus.
Há muitas eras que Cajazeiras tem sido parada
obrigatória para quem viaja por esses caminhos e veredas entre o Seridó e a
Capital. Derna dos tempos de quando se andava a cavalo. Eram cinco, seis dias
montados em cavalo ou em burro ou burra mula, do Seridó até Macaíba, saindo de
Serra Negra, como se lê os livros do doutor Juvenal Lamartine de Faria, de Oswaldo, o filho, e de Pery, o neto. Cajazeiras já aparece como
uma das paragens. Era uma fazenda. Mais tarde o lugar ficou famoso por conta do
Café das Marias, aí já no tempo das sopas, dos ônibus, dos automóveis. Café e
restaurante. O lugar se chamava Lagoa das Marias. As Marias já não existem
mais, a Lagoa, sim, agora pousada de
dezenas de garças. Cajazeiras cresceu naquele entorno, mais pra cá da banda de Macaíba. Em frente às
antigas “Marias” começa a estrada para São Pedro, São Paulo do Potengi e, num
desses desvios, o caminho para as Queimadas, Lagoa de Velhos. Serra de Joana
Gomes.
Hoje o lugar cresceu bastante (qualquer dia desses
será município autônomo, dependendo do interesse do deputado, um vereador aqui
tantos acolá) à margem da BR, muitos quiosques e barracas onde se vendem
comidas e bebidas, tem uma galinha caipira muito recomendada, e uma barraca que
serve farofas de deixar o poeta Alex Nascimento lambendo os beiços. Mais na
frente uma barraca com artesanato e outra que vende grudes tão bons quanto os de Extremoz. Foi lá
que encontrei o mestre Ancelmo. Me abanquei ao seu lada para saborear, não
somente os grudes com café bem quente,
mas também a prosa do velho sertanejo, tataraneto de criador de boi e de
tirador de leite.
Vinha para uma consulta médica (tira do bolso um
cartão com nome do famoso proctologista, doutor Otávio Benildo Rocha Venturoso,
um sergipano que fora indicado por um criador de cabras e ovelhas, seu compadre
Francisco Dantas). Vinha sofrendo, a algum tempo, de prisão de ventre, já havia
tomado não sei quantos chás e outras meizinhas sem apresentar nenhuma melhora.
Por isso recusou o grude, a tapioca, o
bolo de milho e até o café. Pediu apenas uma garrafa de água mineral.
E foi por conta dessa água que o mestre Saldanha
começou a desenvolver sua tese de que trabalhar com agricultura e com boi no
Nordeste é botar dinheiro fora, mais agravado, agora, com a seca braba e o
descaso do Governo. Puxou do bolso uma folha de papel com várias anotações,
datas, números e cifras e foi falando:
- Olhe, seu Madruga, esta garrafinha (350 ml) de
água mineral custa R$ 2,80. Pois bem, pra poder pagá-la tenho que vender 3
litros de leite e arranjar por fora mais 10 centavos. Me pagam por um litro de
leite 0,90 centavos. Olhe mais: um ovo de galinha caipira, apanhado na capoeira
custa 0,50 centavos. Um litro de leite
não compra dois ovos.
Toma um gole
de água e continua:
- No começo do Plano Real (1994) um saco de farelo
de soja custava R$ 11,20 que correspondia ao valor de 32 litros de leite, então
valendo 0,35 centavos. Hoje, o mesmo farelo vale R$ 78,00 o idêntico valor
de 86 litros de leite (0,90); Um saco
de ureia (pra fazer ração), no Plano Real, era vendido por R$ 13,30, que
correspondia a 17 litros de leite (0,35); no dia de hoje o mesmo saco de ureia
é vendido por R$ 112,00, que é o valor de 124 litros de leite.
Outro gole d’água:
- O salário mínimo, no Plano Real, era de R$ 70,00.
Pagava-se com 200 litros de leite. Hoje, o salário é de R$ 622,00. São precisos
691 litros de leite, a 0,90. Tem mais: um bezerro da hora que nasce até 45 dias
de vida vale R$ 60,00, o equivalente a duas galinhas caipira no Agreste (pode
perguntar na Feira do Alecrim) e três no Sertão.
O velho Saldanha não para de fazer contas e, num tom de derrotado, acrescenta:
- Um salário mínimo corresponde ao preço de 10 bezerros. Em
12 meses você paga a um empregado o equivalente a 124 bezerros. Se a fazenda
tiver 5 empregados a conta sobe para 622 bezerros. Pergunto a você: vale a pena
criar boi?
Olha para o movimento da estrada, são muitos carros
passando, matuta e desabafa:
- Quando o governo fala em financiamento para o
produtor rural, não leva em conta de que 65% estão inadimplentes com os bancos
e, em muitos casos, o banco anda querendo tomar a terra das pessoas que na vida
inteira só aprenderam a ser criador de boi, de vaca, de bode. Nas secas de 58,
73, 83 e 93, o sertanejo conviveu com 21
meses consecutivo sem chuva, em cada uma destas secas, entretanto, teve ajuda,
sim, dos bancos oficiais e a inadimplência foi mínimo. Hoje, o governo não sabe
fazer estas contas. Os bancos oficiais também não. Pior: tratam o verdadeiro
homem do campo, como eu, como foi o meu pai, como foi o meu bisavô como não
passasse de um especulador de dinheiro.
O velho Saldanha se levanta, tira do bolso uma nota
de 10 reais, paga as três garrafinhas de água mineral, olha para a moça do
balcão – uma cabrocha bem fornida – e diz, educadamente: guarde o troco,
menina. Despede-se de todos, volta para a camionete. Antes de bater a porta,
falou:
- Vou agora me penitenciar com o dr. Rochinha.
Tomara que o homem não tenha o dedo muito grosso.
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