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domingo, 8 de julho de 2012

O adeus do filho à sua mãe caicoense

Um adeus

Por Carlos Fialho*
Escritor e publicitário cruvinelcamisa9@gmail.com

Não sei quem é o autor da frase: “Não tenho medo da morte, terei sim, saudade da vida.” Seja lá quem for o feliz responsável por havê-la proferido, não consigo imaginar forma melhor para definir o sentimento que a minha mãe tinha com relação a essa passagem, por vezes venturosa, outras torturante, que chamamos de existência. Mainha não tinha medo de quase nada. O destino sempre lhe infligiu sofrimentos monumentais. Ela acusava o golpe, mas logo se recompunha, imbuída de uma força descomunal e seguia adiante sem perder a alegria de viver. Nem mesmo a possibilidade de morrer lhe causava receio, pois já havia enfrentado em sua vida cargas bem mais pesadas, como a partida precoce de dois filhos.

Minha mãe era uma seridoense forte, de personalidade talhada nos serrotes de Caicó. Era expansiva, falava muito, falava alto, falava sempre. Uma dessas pessoas totalmente abertas ao monólogo para quem a indiferença não fazia parte do repertório. Tomava partido em tudo. Reagia com intensidade e muita emoção a todas as intempéries e dádivas que lhes surgissem no caminho. Era solidária e abnegada na mesma medida em que se deixava levar pela mágoa momentânea de algum parente ou amiga próxima, fazendo verdadeiras tempestades em minúsculos copos d’água. Algumas vezes, ela descontava em mim alguma raiva que tivera. Lembro de uma vez que, oprimida pelo meu silêncio diante de algum desabafo que me fazia, interpelou-me: “Vai ficar aí calado? Você nunca fala nada?” Respondi: “Não é que eu nunca fale nada, Mainha. É que eu não gosto de interromper.” Minha gaiatice a desarmava. Aliás, o humor era um dos seus pontos fracos, pois ela própria era muito bem humorada.

Apoiou-me em tudo que fiz na vida. Criou-me com liberdade e orientou-me a ser a melhor pessoa que eu puder, moldando minha personalidade segundo valores morais tradicionais, mas deixando-se também influenciar por minha personalidade amena e liberal. Sem dúvida, o homem que vim a ser é produto do empenho de uma mulher que lutou e protegeu seu filho como pôde.

Quando conheceu Nina, principalmente depois que casamos, adotou-a como se fosse uma filha. Neste ano de 2012, realizou um velho sonho e mudou-se para a praia de Pirangi. Sempre adorou o mar. Íamos visitá-la todos os fins de semana para conferir de perto sua felicidade e aproveitar o melhor de dois mundos: hospedagem sertaneja de frente pro Atlântico. Em nossas idas ao litoral próximo, fazíamos planos. O mais recente era construir duas casas vizinhas para que ela pudesse envelhecer perto da gente. Não deu. Infelizmente, quis o destino que sua trajetória fosse interrompida no último fim de semana.

É angustiante perceber que, em nossas vidas, temos controle sobre muitas coisas, mas não sobre a morte. Minha mãe nos deixou inesperadamente, sem qualquer aviso ou chance de defesa. Sentiu-se mal para nunca mais sentir-se bem. Sofreu o golpe implacável da navalha da morte que, de uma só vez, tirou-lhe a vida e uma considerável porção de alegria de nosso mundo. De minha parte, sempre cultivei a expectativa que minha mãe teria um fim mais tranquilo, após toda uma vida de sofrimentos extremos. Nunca imaginei vê-la chorando de dor por mais de 24 horas enquanto vários médicos se revezavam para nos atualizar com as últimas indefinições sobre seu diagnóstico.

Mainha deu entrada no hospital na sexta. Sentia fortes dores abdominais e estava com o lado esquerdo do corpo paralisado. Com o passar das horas, recuperou todos os movimentos e um quadro neurológico foi descartado. Após exames, constataram inflamação na vesícula e marcaram uma cirurgia de remoção para o sábado. “Coisa simples. No domingo, ela estará em casa”.  Enquanto aguardava a hora, seria tratada com antibióticos que combateriam a infecção.

Na madrugada, porém, sua situação só piorou. Ela pedia algo que aliviasse sua dor e eu dizia: “O médico já colocou analgésico no soro, mãe. Deve estar fazendo efeito daqui a pouquinho.” Esgotadas as instâncias, pedia que eu segurasse sua mão. Assim eu fazia enquanto as lágrimas corriam soltas. Uma provação que não desejo pra ninguém. Atordoada pelo sofrimento, já não articulava frases nem concatenava as ideias, mas percebeu que eu não poderia ajudá-la. Apelou então para uma instância superior. Repetiu por horas a fio: “Me ajuda, Pai! Tira essa dor de mim!”

Como eu xinguei Deus nesse dia! Como tive raiva e me arrependi de cada momento devotado a qualquer tipo de fé. Revoltei-me com aquela situação toda e por vê-la prostrada, humilhada, suplicando por alívio, por uma ajuda que não vinha. Ao meio-dia de sábado, já na UTI, enquanto minha mulher e eu segurávamos suas mãos, teve uma convulsão e o médico veio às pressas induzir o coma do qual ela não tornaria a despertar.

Essa semana foi difícil. Velório, missa, enterro. A necessidade de ir a sua casa, recolher documentos e, em meio à busca, encontrar ainda intactos cartões de Dia das Mães que um certo eu escrevi ainda criança. Também me deparei com todos os meus livros publicados, dedicados a ela e guardados junto a recortes de jornais em que eu aparecia. Reportagens de Sérgio Vilar e Marcílio Amorim sobre meus lançamentos e fotos pessoais, várias fotos, minhas, dela, dos meus irmãos falecidos.

A gente nunca fica inteiro após atravessar dias como estes. Tentei fugir do assunto e redigir algo mais espirituoso, mas não estaria sendo honesto comigo nem com vocês que me leem. Tenho torcido para que Deus exista e que tenha, de alguma forma, atendido seu pedido de ajuda. Se a única maneira de fazê-la sentir-se melhor era levando-a de nós, espero que ela esteja bem agora. Perdi Mainha, mas acho que ganhei um anjo da guarda. Lurdete Dias, minha mãe, era um porto seguro para minha família. Sua partida nos deixa desolados e esse texto desajeitado traz em si a tentativa de um adeus.

*Texto publicado na coluna do escritor no NOVO LORNAL
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