Um
adeus
Por
Carlos Fialho*
Escritor
e publicitário ▶ cruvinelcamisa9@gmail.com
Não sei quem é o autor da frase: “Não tenho medo da
morte, terei sim, saudade da vida.” Seja lá quem for o feliz responsável por
havê-la proferido, não consigo imaginar forma melhor para definir o sentimento
que a minha mãe tinha com relação a essa passagem, por vezes venturosa, outras
torturante, que chamamos de existência. Mainha não tinha medo de quase nada. O
destino sempre lhe infligiu sofrimentos monumentais. Ela acusava o golpe, mas
logo se recompunha, imbuída de uma força descomunal e seguia adiante sem perder
a alegria de viver. Nem mesmo a possibilidade de morrer lhe causava receio,
pois já havia enfrentado em sua vida cargas bem mais pesadas, como a partida
precoce de dois filhos.
Minha mãe era uma seridoense forte, de personalidade
talhada nos serrotes de Caicó. Era expansiva, falava muito, falava alto, falava
sempre. Uma dessas pessoas totalmente abertas ao monólogo para quem a
indiferença não fazia parte do repertório. Tomava partido em tudo. Reagia com
intensidade e muita emoção a todas as intempéries e dádivas que lhes surgissem
no caminho. Era solidária e abnegada na mesma medida em que se deixava levar
pela mágoa momentânea de algum parente ou amiga próxima, fazendo verdadeiras
tempestades em minúsculos copos d’água. Algumas vezes, ela descontava em mim
alguma raiva que tivera. Lembro de uma vez que, oprimida pelo meu silêncio
diante de algum desabafo que me fazia, interpelou-me: “Vai ficar aí calado?
Você nunca fala nada?” Respondi: “Não é que eu nunca fale nada, Mainha. É que
eu não gosto de interromper.” Minha gaiatice a desarmava. Aliás, o humor era um
dos seus pontos fracos, pois ela própria era muito bem humorada.
Apoiou-me em tudo que fiz na vida. Criou-me com
liberdade e orientou-me a ser a melhor pessoa que eu puder, moldando minha
personalidade segundo valores morais tradicionais, mas deixando-se também
influenciar por minha personalidade amena e liberal. Sem dúvida, o homem que
vim a ser é produto do empenho de uma mulher que lutou e protegeu seu filho
como pôde.
Quando conheceu Nina, principalmente depois que
casamos, adotou-a como se fosse uma filha. Neste ano de 2012, realizou um velho
sonho e mudou-se para a praia de Pirangi. Sempre adorou o mar. Íamos visitá-la
todos os fins de semana para conferir de perto sua felicidade e aproveitar o
melhor de dois mundos: hospedagem sertaneja de frente pro Atlântico. Em nossas
idas ao litoral próximo, fazíamos planos. O mais recente era construir duas
casas vizinhas para que ela pudesse envelhecer perto da gente. Não deu.
Infelizmente, quis o destino que sua trajetória fosse interrompida no último
fim de semana.
É angustiante perceber que, em nossas vidas, temos
controle sobre muitas coisas, mas não sobre a morte. Minha mãe nos deixou
inesperadamente, sem qualquer aviso ou chance de defesa. Sentiu-se mal para
nunca mais sentir-se bem. Sofreu o golpe implacável da navalha da morte que, de
uma só vez, tirou-lhe a vida e uma considerável porção de alegria de nosso
mundo. De minha parte, sempre cultivei a expectativa que minha mãe teria um fim
mais tranquilo, após toda uma vida de sofrimentos extremos. Nunca imaginei
vê-la chorando de dor por mais de 24 horas enquanto vários médicos se revezavam
para nos atualizar com as últimas indefinições sobre seu diagnóstico.
Mainha deu entrada no hospital na sexta. Sentia
fortes dores abdominais e estava com o lado esquerdo do corpo paralisado. Com o
passar das horas, recuperou todos os movimentos e um quadro neurológico foi
descartado. Após exames, constataram inflamação na vesícula e marcaram uma
cirurgia de remoção para o sábado. “Coisa simples. No domingo, ela estará em
casa”. Enquanto aguardava a hora, seria
tratada com antibióticos que combateriam a infecção.
Na madrugada, porém, sua situação só piorou. Ela
pedia algo que aliviasse sua dor e eu dizia: “O médico já colocou analgésico no
soro, mãe. Deve estar fazendo efeito daqui a pouquinho.” Esgotadas as
instâncias, pedia que eu segurasse sua mão. Assim eu fazia enquanto as lágrimas
corriam soltas. Uma provação que não desejo pra ninguém. Atordoada pelo
sofrimento, já não articulava frases nem concatenava as ideias, mas percebeu
que eu não poderia ajudá-la. Apelou então para uma instância superior. Repetiu
por horas a fio: “Me ajuda, Pai! Tira essa dor de mim!”
Como eu xinguei Deus nesse dia! Como tive raiva e me
arrependi de cada momento devotado a qualquer tipo de fé. Revoltei-me com
aquela situação toda e por vê-la prostrada, humilhada, suplicando por alívio,
por uma ajuda que não vinha. Ao meio-dia de sábado, já na UTI, enquanto minha
mulher e eu segurávamos suas mãos, teve uma convulsão e o médico veio às
pressas induzir o coma do qual ela não tornaria a despertar.
Essa semana foi difícil. Velório, missa, enterro. A
necessidade de ir a sua casa, recolher documentos e, em meio à busca, encontrar
ainda intactos cartões de Dia das Mães que um certo eu escrevi ainda criança.
Também me deparei com todos os meus livros publicados, dedicados a ela e
guardados junto a recortes de jornais em que eu aparecia. Reportagens de Sérgio
Vilar e Marcílio Amorim sobre meus lançamentos e fotos pessoais, várias fotos,
minhas, dela, dos meus irmãos falecidos.
A gente nunca fica inteiro após atravessar dias como
estes. Tentei fugir do assunto e redigir algo mais espirituoso, mas não estaria
sendo honesto comigo nem com vocês que me leem. Tenho torcido para que Deus
exista e que tenha, de alguma forma, atendido seu pedido de ajuda. Se a única
maneira de fazê-la sentir-se melhor era levando-a de nós, espero que ela esteja
bem agora. Perdi Mainha, mas acho que ganhei um anjo da guarda. Lurdete Dias,
minha mãe, era um porto seguro para minha família. Sua partida nos deixa
desolados e esse texto desajeitado traz em si a tentativa de um adeus.
*Texto publicado na
coluna do escritor no NOVO LORNAL
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