Blecaute tá vivo
Por Franklin Jorge*
Jornalista
▶ franklinjorge@yahoo.com.br
O crescente interesse que desperta a vida de
Blecaute entre os jovens atuais merece reflexão e análise ou, simplesmente,
alguma espécie de questionamento necessário. Começou com a sua morte trágica,
súbita, brutal, quando fazia um biscate, consertando a fiação de uma
residência, sem nenhuma precaução ou equipamento. Morreu eletrocutado. Agora,
pintam-no como um herói. Um herói literário que assombra o oficialismo de
Natal. Já quiseram até degluti-lo, entronizando-o, post-mortem, num Dia da
Poesia, mas se engasgaram.
Imolado pela arte, Edgar Borges – seu nome civil –
vem se tornando o símbolo de algo que nos incomoda. – É, sobretudo, o símbolo
da contracultura militante entre nós. Um ícone, enfim, contracultural, por
excelência; alheio a privilégios, nadando contra a corrente, em permanente
corpo a corpo com a vida mesquinha, foi sobrevivendo na província hostil e
canibalesca, curtindo internações psiquiátricas e sevícias, até o choque final.
Um ser inusitado, esse Blecaute, que nasceu e viveu em Natal, vacinado contra o
convencionalismo, contra a regra, contra o reducionismo pseudo-burguês que
afligiu em seus versos desconexos ou surreais. A bem da verdade, em matéria de
produção, só produziu efetivamente uma espécie de mal-estar moral, ao externar
a sua confiança na vida e seu desejo de viver.
Não é, como escritor, relevante. Porém possuía
múltiplos talentos em estado selvagem, entre os quais a poesia, a pintura, a
comunicação e, por fim, nas quais se realizou integralmente, as performances
que deram notoriedade ao seu jeito gauche e excêntrico de ser, mal assimilado
pelas forças de segurança, ás vezes apenas para gozo da perversidade de alguns
policiais, ou, por idiossincrasia, discordarem do seu gosto por “modelitos”
compostos segundo um viés estético personalíssimo, algo assim como uma grife by
Blecaute.
Eternamente flâneur, terá sido o último dandi de
Natal. Presente em toda a parte, sempre estiloso e elegante made in Blecaute; fazedor de
surpreendentes modelitos, fazendo-se notar por sua maneira ousada e nada
convencional de se vestir, ao combinar com inteligência e ousadia elementos,
padronagens, cores, texturas e adereços capazes de chamar a atenção, inclusive
da policia que fazia-lhe o buillyng moral, na época, ainda não reconhecido como
tal nem criminalizado. A escolha dos adereços, óculos, colares, cintos,
chapéus, bonés, pulseiras, anéis, lenços, sapatos. Essa profusão de detalhes
deixavam a policia em alerta. Queriam sempre saber como, vivendo de biscates,
vestia-se tão bem e ostensivamente exibia a sua personalidade gritante. Nunca a
mesma combinação todos os dias, rezava a cartilha do esteta e estilista
Blecaute. O mundo era, para Blecaute, uma permanente novidade.
Um verdadeiro horror, recordava–se, conversando em
minha sala no Solar Bela Vista. Uma vez chorou contando-me o que de humilhações
e sevícias sofrera nas mãos de um delegado que o prendera por destoar da moda e
estar tão bem vestido quando aparentava ser um duro contumaz.
Recebia-o toda vez que me procurava e, das nossas
conversas e de suas pungentes confissões extraí um capitulo do “Spleen de
Natal” [1996, livro reeditado em 2001 pela Editora da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte e inspirador, desde então, de uma rica e crescente “fortuna
crítica”, teve apenas o seu primeiro vvolumm publicado ate agora...], que se
tornou muito lido entre os novos iconoclastas. Blecaute, se me perguntam, era
um negro bem apessoado, magro, elegante, expressando-se bem, viveu uns tempos
com Gardenia, que dizia ser nome de mulher e de flor. Apresentou um programa de
rádio que dava conta das atividades culturais da cidade, comentava e criticava.
Por algum tempo, teve audiência cativa nas noites de sábado.
Quando morreu, ninguém lhe reclamou o corpo, exceto
o jornalista Flávio Rezende, e ele ficou na geladeira do necrotério por vários
dias, morto insepulto. Foi ele, Flávio Rezende, que levou a peito a tarefa de
organizar-lhe funerais cristãos dignos. E o fez, movendo céu e terra em Natal,
para homenagear esse rei vagabundo que por algum tempo reinou sobre a cidade,
curiosamente, no entanto, sempre em busca de trabalho e ocupação. Sobrevivendo
numa cidade que o teria deixado “pirandélico”, transitando entre a sua casa, em
Mãe Luiza, e as celas do hospital psiquiátrico. Porém sem perder o estilo
jamais.
*Texto publicado em sua
coluna no NOVO JORNAL
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