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sábado, 26 de janeiro de 2013

Oração para Mané escrita por um mestre das letras

Por Albimar Furtado*
Jornalista albimar@superig.com.br
 
Garrincha foi agora lembrado pelos 30 anos de sua morte. Merecidas homenagens. Não vou escrever sobre aquele que foi a alegria do povo. Tenho não cacife para tal. Mas trago luz a este espaço transcrevendo um dos mais bonitos textos sobre o craque do Botafogo, de autoria de outro gênio, este da palavra, Armando Nogueira, publicado em março de 1978, antes da morte do ídolo.
 
“Driblar, tendo as pernas tão tortas –e driblar como ninguém- eis um mistério de Garrincha que eu não ouso explicar;
 
Driblar, tendo uma perna mais curta que a outra –e driblar como ninguém- eis um mistério de Garrincha que tu não ousas explicar;
 
Driblar, tendo um desvio na espinha dorsal –e driblar como ninguém- eis um mistério de Garrincha que ele não ousa explicar;
 
Driblar, tendo a bacia deslocada no sentido oposto ao desalinho das pernas –e driblar como ninguém- eis um mistério de Garrincha que nós não ousamos explicar;
 
Driblar, quase sempre para o mesmo lado, repetindo o gesto mil vezes para mil vezes afirmar-se negando o próprio conceito de drible –eis um mistério de Garrincha que não ousais explicar;
Driblar, como já o vi driblar, tendo o ombro enfaixado, o braço imobilizado, a clavícula quase quebrada –e driblar como ninguém- eis um mistério de Garrincha que eles não ousam explicar;
Driblar, e driblar com tanta graça e naturalidade- eis um mistério de Garrincha que só Deus pode explicar.
 
O nosso Mané aqui chegou duas vezes sob a proteção de batedores, hinos e bandeiras, herói de duas guerras em que conquistou o mundo sem matar ninguém, só brincando de gato-e-rato: os computadores soviéticos, tão certeiros nos rumos da Lua, tão desorientados pelo drible angelical do guerrilheiro. Drible que todos beijaríamos, a começar pelo mestre Drummond, ainda que beijando o gesto fosse preciso beijar-lhe os pés. Porque, correndo pelos campos ele era um anjo de pernas tortas mas no caminho certo, no caminho da alegria mais pura que eleva o homem as portas do céu.
 
Vinha cá na intermediária, recolhia a bola: velocidade zero. Num segundo, dava-se o arranque, um metro adiante aquela explosão muscular lançava-o no espaço com a leveza de um passarinho: se quizesse voar, voava, mas não era preciso tanto para chegar ao ninho (não existe uma história de aninhá-la no fundo das redes?). Bastava frear o corpo, arrancar de novo pela direita -, e lá se ia por terra o equilíbrio universal dos laterais. Saibam os matemáticos que muitas vezes ele parecia deixar no meio do caminho, às quedas, seu próprio centro de gravidade: e continuava, em pé, pela direita, fluente como uma queda d’água.
 
Lançado no processo do drible transfigurava-se: era Chaplin, esculpindo no vento uma sucessão maravilhosa de gestos cômicos; era o toureiro inventando verônicas que a multidão saudava cantando olé; era São Francisco de Assis, engrandecido na humildade com que sofria os pontapés do desespero. Aquele drible pela direita que era a negação do drible porque é sabido de todos, em todos os campos do mundo, fez milionários sem conta. Chegava à linha de fundo, os beques cercando a área, o espaço minguado... um metro, meio metro, “ele não tem mais campo, vou dar o carrinho agora”. Amarga ilusão: para um drible dele, superfície de um lenço era um latifúndio.
 
E o centro, meia distância, rasteiro ou aéreo, punha a bola aos pés do artilheiro. Individualista, sinônimo de egoísta: não na cartilha dele que fazia do drible a alegria do povo e do passe a glória do companheiro.
 
Tudo isso foi ontem.
 
Quem sabe dele, hoje?
 
Anda por aí, acorrentado, chutando, talvez de sandálias, a bola de ferro da nossa indiferença.
 
*Texto publicado na coluna do jornalista no NOVO JORNAL
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