Por
João Bosco de Araújo
Sinforosa estava bem
usada. O maltrato chegava aos olhos de todos, se bem que esse todo tinha o
maior apreço e mesmo com dó não se limitava de nunca deixar de passar a mão, o
que a deixava ainda mais sobrecarregada. Não porque o seu proprietário o quisesse,
o fato é que a camioneta servia de transporte coletivo entre a cidade e o sítio,
uma distância, em média, de 25 km, que nesse trecho percorrido o que não faltavam
eram passageiros na beira do caminho a esperar uma carona amiga e social.
Pedro Salviano,
implacável ao volante, não hesitava e antes que o passageiro desse o sinal de parar, dava início a brecar o automóvel que, embora caminhasse em marcha lenta,
somente iria parar metros após o lugar desejado, forçando o caroneiro a correr
até o canto da grade da carroceria e num impulso olímpico conseguir um lugar
entre tantos que se acomodavam naquele carro em movimento.
Quantas mulheres
grávidas perto de dar à luz, e Pedro Salviano era acordado na madrugada para ir
levá-las até a maternidade, em Caicó. Mortos transportados sem caixão para
serem enterrados na cidade, em urna da prefeitura. Um costume entre os
sertanejos nesse trajeto: bebericar o defunto.
Quantas urgências; fosse
uma dor de dente, feridos à bala, colapso ou passatempo, Sinforosa estava ali
para transportá-los. Animais: galinhas, porcos, peixes, patos e perus, cabras e
ovelhas, Sinforosa também era uma verdadeira Arca de Noé.
O veículo Chevrolet,
modelo norte-americano, ano 1951, permaneceu em poder de seu proprietário por
cerca de duas décadas, desde o início dos anos 1960 até a década seguinte.
Foram anos de resistência aos encalces e trajetos do lugar, cercado de
pedregulhos, buracos e lama na época do inverno.
Nas chuvas, Sinforosa
ficava a mercê do tempo e do que poderia vir a acontecer. Até que o Açude Itans
não sangrasse, o caminho a fazer pelo Rio Barra Nova, bem acima da vazante da
Barra da Espingarda. Com o aumento do volume do rio e o açude já cheio, a única
solução seria ir pelo “Alto do Quebra-cu”, uma estrada de curvas, pedras e
serrotes, que passava pelo sangradouro e depois seguia pela parede do açude. O
veículo subia e descia cruzando pontas de pedras e lajes, com solavancos e uma
trepidação seqüenciada, tornando uma angústia e dolorosa situação para os
passageiros sentados na carroceria.
Fechados os acessos com
a sangria do Itans – inclusive pelo “Alto do Quebra-cu” –, o único jeito seria
chegar à beira do rio na camioneta e atravessar por meio de canoas, já
comercializado o transporte por pescadores do lugar. Do outro lado da margem, o
grupo escolar da Barra da Espingarda e o trajeto a pé até chegar ao “Aleijado”,
uma casinha na beira da BR 427, cuja calçada era abrigo da espera do ônibus e
outros carros para chegar a Caicó.
Terminada a feira, o
retorno e tudo se repetia até a morada, já noite. Foi então que aconteceu o
inusitado, entre João Pereira da Pedra D’água e “Binô”, um canoeiro nas horas
vagas. Como estava bem tarde, ninguém queria fazer o transporte de um lado a
outro do rio. Foi sugerido a “Binô”, mas ele não concordou na tarefa salubre.
Nesse ínterim, surge João Pereira e sem muita discussão pega o pobre canoeiro e
o mergulha no rio, segurando sua cabeça até a altura do pescoço. Ao
levantar-se, assustado, olhos arregalados e respirando com dificuldades, ouve
de Pedro Salviano, já bem sentado na canoa, a perguntar se a água estava morna.
Foi o suficiente para o mal-estar, se bem que o dublê de canoeiro não mais
hesitara de transportar os feirantes com destino ao Umbuzeiro.
Nem só de tristeza vivia
Sinforosa. Como outra qualquer, vivenciou momentos de pura alegria. Fossem em
viagens de casamentos, batizados, festas de aniversários, forrós nos arredores,
sempre estava lotada. O surpreendente em tudo isso ficava por conta do seu
dono, que não cobrava um tostão sequer pelo custo da viagem. Fosse
aonde fosse, com quem quer que fosse!
Entre tantos fatos
ocorridos, mais outro surpreendente. Duas moças acabavam de chegar de São
Paulo. Embora fossem do lugar, fazia um tempo que moravam na capital paulista e
impunham um sotaque sulista na maneira de se expressar.
Na porta do grupo
escolar da comunidade Açudinho, as duas sorridentes e elegantes moças levantam e
movimentam o polegar esquerdo da mão num trejeito diferente de pedir carona,
muito comum em centros urbanos. Sinforosa é, bruscamente, brecada pelo motorista.
- Dares pra me ires?– fuzilou num carregado sotaque
baiano-paulista-italiano a feliz e agora sulista-urbana diante de uma camioneta
lotada de béradeiro.
Pedro Salviano não titubeou.
– Ô, cusdiacho! Sobe, a boleia
tá cheia!
E Sinforosa segue
viagem, sem constrangimentos, nem arrependimentos e sofrimentos. O Sul
maravilha estava mais perto, a civilização já não era um desejo, o sonho de
consumo parecia ser uma realidade. Sinforosa chega na cidade. As duas mocinhas,
sem a timidez das donzelas, soletram ao descerem do carro.
– Quantos qui eres?
Pedro Salviano as
observa, abre um sorriso insinuante e responde:
– Na-da!
E dá marcha a Sinforosa,
resmungando aos lados.
– Essas duas bestas não são as filhas de compadre João Antônio?
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