Alpendre vazio
Por Fernando
Antonio Bezerra*
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Casa de fazenda - Foto: Nathália Diniz
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A casa
grande em duas águas, preferencialmente construída em um ponto mais alto, com a
frente voltada para o nascente, é apresentada pelo alpendre que, no dizer dos
arquitetos, é “uma extensão do telhado, ou tem sua própria cobertura
independente, porém semelhante ao telhado. Pode ter apoio próprio ou sobre
colunas”. É, em resumo, um típico espaço das casas construídas nas terras de
clima mais quente, como os países tropicais. Para nós, o alpendre é muito mais
que estrutura ou espaço edificado. O alpendre do sítio é relicário de momentos,
lembranças e sentimentos.
No Seridó
que a gente ama, do alpendre, em regra, se avista o curral, o armazém e, não
raro, o açude. Aliás, em torno do açude se dá a vida econômica da propriedade
rural e em torno do alpendre a vida social. É o lugar da tradição oral, do
balanço da rede, do tamborete encostado na parede e até, em alguns lugares, da
mesa com pano verde onde ganha quem presta atenção nas cartas que o outro
entrega. O alpendre, na casa do sítio, é muito, mas, sem gente, se torna pouco.
O povo do sítio foi indo embora carregado pelas
secas, pelo desprestígio a quem trabalha no pesado, pela insegurança, pela
solidão ou até mesmo pela ilusão de promessas feitas de vida melhor na rua.
Antes, mesmo os filhos na cidade, a família se reunia de tempos em tempos e
contagiavam o alpendre com a alegria do reencontro e com a abundância de
comidas tradicionais que, infelizmente, estão deixando as mesas das casas
porque o aprendizado da boa gastronomia sertaneja alcança, a cada geração,
menos pessoas. Dos doces a comidas de milho; da galinha tratada no chiqueiro à
costura das buchadas; da paçoca no pilão ao café coado no pano, enfim, pelas
mãos prendadas – sobretudo das mulheres – eram preparados nas próprias casas os
mais variados pratos e da cozinha vinha o grito esperado no alpendre: o almoço
está na mesa!
E a noite
cedo, depois da ceia, ainda no alpendre, eram ouvidas as histórias das
famílias, dos vaqueiros, da pega do boi, da caça às onças, do bote da cobra no
açude e outras mais “estórias de trancoso, do cão, dos tempos em que os bichos
falavam”, conforme escreveram, no livro “Seridó – Sec. XIX, Fazenda &
Livros” os geniais Padre João Medeiros Filho e Oswaldo Lamartine de Faria,
acrescentando: “Quase todas essas contadeiras de estórias eram empregadas,
donas de rico repertório e arte representativa de vozes, inflexões e gestos que
faziam o hipnótico encanto da meninada. Algumas, de tão célebres, eram
convocadas para temporadas nessa ou naquela fazenda. Livros-vivos de estórias
de um mundo que se foi...”
Mundo também
que tinha seus males e pragas, mas de aflorada solidariedade entre as pessoas.
Precisamos lembrar um pouco mais da cultura que foi berço de pobres e ricos do
Seridó que nos antecedeu. Resgatar um pouco do que é possível e daquilo que é
bom. Existem resistentes, mas, infelizmente, a maioria dos alpendres - de
domingo a domingo - permanece sozinho. Com o consumismo além da conta que se
pode pagar; com a mudança de costumes onde o resultado se espera antes do
esforço; com a preferência desordenada pela urbanização, seus danos previstos e
tudo o mais que todos sabem, o alpendre está vazio, muitas vezes com o telhado
arriado pela saudade, cheio de lembranças e seco de vida.
*Fernando Antonio Bezerra é potiguar do
Seridó com post na página do Bar de Ferreirinha
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