Amor de cão*
A mulher morreu, não de
morte morrida, mas de morte matada, como diriam os velhos de minha cidade. A
rua inteira presenciou a cena cruel e maldita. O filho, perdido e pecador já de
muito tempo, dera-lhe oito facadas. Outra cena desse mundo brutal que vira
manchete de tevê. As dores de mãe que sofre duplamente. Houve choro, dor,
sentimento de ruína, insônia, desespero e falta de palavras. Houve gente que
quis vingança, mais morte, chacina, “olho por olho, dente por dente”. Dias
depois, a casa vazia mantinha o cachorro, fiel amigo, dormindo na calçada.
Tristonho, faminto de carinho, vez por outra, levantava o focinho à procura da
mão idosa que lhe trazia a água, a ração, o afago. E nada vinha. A família já
havia vendido a casa, mas o cão estava lá. Ninguém tinha forças para levá-lo
dali. Os filhos que ficaram, pareciam sem rumo, o velho pai só queria outro
mundo, outra vida para esquecer a dupla tragédia de Nova Parnamirim. Todos
estavam em frangalhos: os nervos, a vida, as lembranças agora apagadas com
aquela morte. O filho, triste farrapo humano, estava preso para sempre agora.
Na sombra amiga da
enorme árvore que cobria a varanda, o cachorro permanecia quieto, até as
crianças ficaram-lhe estranhas, nem mais lhes latia, causando-lhes gritos de
sustos. Um grande silêncio entrara-lhe na alma animal e parecia que tudo na
casa possuía uma mancha de sangue. A polícia viera tantas vezes procurar mais
provas para o bárbaro crime. Os repórteres iam e vinham carregando seus
apetrechos de sempre. Um click aqui e outro ali, mas ninguém percebia o enorme
cão deitado na calçada. Já eram tantos os estranhos que entraram para ver a
cena do crime, que ele nem mais grunhia para espantá-los. As horas passavam tão
sem gosto, todavia não era tédio que havia ali. Era um sofrido e imenso
silêncio. Sem vazio, sem calor, só a brisa de agosto, passando cheia de poeira,
deixando o focinho do cachorro mais sensível... De longe, alguns latidos
externos suavizavam a solidão do animal, já também um pouco velho e cansado,
nem respondia mais...
Lá pelo dia 28, um
ruidoso estrondo encheu o ar da vizinhança. Homens parrudos de braços escuros e
musculosos atravessaram o portão da casa, carregando marretas. Um por um
levantou o braço, batendo aqui e ali. Foi preciso apenas um sábado para a casa
inteira vir abaixo. Prenderam o cachorro debaixo da árvore e só pararam, quando
às onze horas, um dos filhos da mulher morta chegou com as marmitas com o
almoço. Todos comeram em silêncio resguardados pelos olhares ao chão. Nem mesmo
nessa hora lembraram-se do animal de estimação, que de tão triste, não se
mexia. Nada comera, só ficou, olhando longamente pro vazio da rua, dessa vez
também vazio da casa que se fora. Fora uma longa noite de sábado.
O domingo chegou e
alguns moradores vieram ver o que sobrara da casa antiga. Entulhos, restos de
paus e ferros, uma estrutura que ruína por completo: da família à casa.
Tentara-se apagar as marcas da cena que horrorizou a cidade, mas a memória de
alguns ainda guarda o que se passou. Uma velha grade jazia encostada ao pé do
muro, foi quando, ao removê-la para junto dos outros entulhos que estavam indo
para o caminhão parado na calçada, um dos filhos dera com o cão inerte, estendido
ali, entre a grade e a parede escura.
O coitado do jovem quase
sucumbira junto à cena tão dura e tão cortante. A pura realidade que estava
para ser apagada para o sempre; agora não apenas o silêncio da ausência
marcaria aqueles dias de brisa leve, agora também o silêncio da morte do cão
fiel pairaria nas almas passantes daquela rua tão distante de tudo...
*Crônica publicada em 2005 no Jornal Tribuna do
Norte - e no extinto blog "Anjos de Prata", após crime bárbaro
acontecido na cidade de Parnamirim.
- Com post atual na página da autora.
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