HERMANOS AMERICANOS
Paulo Afonso Linhares*
Manobras diplomáticas
realizadas em várias frentes, porém, sob uma espessa camada de sigilo,
prepararam certamente a maior das surpresas ocorridas na política internacional
nesta década: o anúncio do reatamento das relações diplomáticas entre Cuba e
Estados Unidos da América, com reflexos que em muito transcendem o âmbito
bilateral e se projetam por todo o continente americano, do Cabo Horn (ponto
extremo meridional da América) à Ilha Kaffeklubben, na Groenlândia (ponto
extremo setentrional americano). Desde que Barack Obama se tornou presidente
dos Estados Unidos da América a expectativa é que fosse dada uma nova
orientação em face do cruel e absurdo bloqueio político e comercial que mantém
há mais de cinco décadas contra Cuba, absolutamente injustificável na atual
conjuntura mundial.
Aqueles saudosistas da
Guerra Fria, que não conseguem ver o mundo noutro cenário que não aquele
maniqueísta em que povos e nações são divididos simplesmente em mocinhos e
bandidos, os do bem e os do mal, anjos e demônios. Coisa mesmo de gente idiota,
reacionária empedernida e sem imaginação. Ora, há décadas os EUA reataram
relações diplomáticas com a China comunista que, nesse meio tempo, se tornou
sua principal parceira comercial. Depois de tudo que o Estado iraniano aprontou,
inclusive com invasão da embaixada norte-americana em Teerã, os
norte-americanos mudaram em muito sua retórica belicista e têm celebrado
diversos acordos bilaterais com o Irã, de modo que as relações diplomáticas
poderão ser normalizadas em breve tempo. Até mesmo com o caricato ditador Kim
Jong-un, da Coreia do Norte, planeja Washington manter um relacionamento
respeitoso. E por que não com fazer o mesmo com Cuba, país vizinho, situado a
menos de noventa milhas do Estado da Flórida?
Em 1975, ao discursar na
Assembleia Geral da ONU, o então chanceler cubano Felipe Perez Roque assim
resumiu as agruras do povo, diante do bloqueio decretado pelos EUA há mais de
50 anos: “"O bloqueio tem custado ao povo de Cuba (...) mais de 82 bilhões
de dólares. Não há atividade econômica ou social em Cuba que não sofra as suas
consequências. Não há um direito humano dos cubanos que não esteja agredido
pelo bloqueio. Em virtude do bloqueio, Cuba não pode exportar nenhum produto
aos Estados Unidos (...). Cuba também não pode importar desde os Estados Unidos
outras mercadorias que não sejam produtos agrícolas, e isso com amplas e
renovadas restrições. Cuba não pode receber turismo desde os Estados Unidos. No
ano 2004, se tivesse recebido apenas 15% dos 11 milhões de turistas norte-americanos
que visitaram o Caribe, Cuba teria faturado mais do que um bilhão de dólares
(...) Por causa do bloqueio, Cuba também não pode utilizar o dólar em suas
transações comerciais com o estrangeiro, nem tem acesso a créditos nem pode
realizar operações com instituições financeiras norte-americanas, suas filiais
e inclusive instituições regionais ou multilaterais. Cuba é o único país da
América Latina e do Caribe que, em 47 anos, nunca recebeu um crédito do Banco
Mundial, nem do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Se o bloqueio for
apenas um assunto bilateral entre Cuba e os Estados Unidos já isso seria muito
grave para o nosso país. Mas é muito mais do que isso. O bloqueio é uma guerra
econômica aplicada com zelo incomparável a escala global".”
O mais interessante
dessa reaproximação entre Cuba e EUA foi a atuação brilhante e precisa do papa
Francisco, pelo que teve reforçada a sua imagem de líder mundial de grande
expressão. Para alguns, prevaleceu a reza forte do pontífice da Igreja
Católica. Pode ser: se efetivamente a fé move montanhas, como professado em
Mateus 17:20, mais fácil é afastar um bloqueio iníquo, renitente e sem qualquer
fundamento no Direito das Gentes, como ocorre com esse cinquentenário bloqueio
norte-americano a Cuba. A atitude do papa Francisco, de grande largueza
humanística e moral, traz à mente uns bons versos do poeta norte-americano T.S.
Eliot, assim cantados nos coros de “A Rocha”: “"Where the bricks are
fallen/We will build with new stone/Where the beams are rottern/We will build
with new timbers/Where the word is unspoken/ We will build with new speech/
There is work together/A Church for all/
And a job for each/ Every man to his work”" (“Onde os tijolos se
quebrarem/Com novas pedras edificaremos/Onde as vigas apodrecerem/Com novas
tábuas edificaremos/Onde a palavra permanece inexpressa/Com uma nova linguagem
edificaremos/Com nosso esforço coletivo/Uma nova Igreja para todos/E um emprego
para cada um/Cada qual ao seu trabalho”).
Uma coisa é certa:
sepultado mais esse resquício da Guerra Fria, a esperança é que cada vez mais
se alastre o sentimento de solidariedade entre os povos e a paz entre as nações
do mundo. No mais, é preciso ter paciência, pois o simples anúncio dessa
reaproximação Cuba/EUA é apenas um primeiro passo, pois muitas barreiras ainda
terão de ser removidas até que se normalizem as suas relações bilaterais. Será
enorme a reação conservadora contra essa reaproximação, sobretudo, dos membros
do Partido Republicano, que agora é majoritário no Congresso norte-americano. O
mesmo se diga no tocante à comunidade de exilados cubanos nos EUA. Enfim,
muitos espinhos ainda juncam esse caminho, mas, ao que tudo indica, são
incapazes de deter esses bons ventos que anunciam um novo tempo para os povos
americanos, do norte, do centro, do sul. Como num trecho da “Canción con todos”
imortalizada por Mercedes Sosa: “ [...] todas las voces, todas/ todas las
manos, todas/ toda la sangre puede/ ser canción en el viento/canta conmigo,
canta/hermano americano/libera tu esperanza/con un grito en la voz!”
*Publicado também na página de Paulo Tarcisio Cavalcanti
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