Salomão Gurgel*
Quando era moleque, nas bandas de Janduís, a gente tinha
medo de alma, de bicho papão, de papafigo, da besta-fera e de muitos outros
fantasmas. Os adultos nos enchiam desses temores, a fim de conseguirem a nossa
obediência. Mas nos encorajavam a ser homem, enfrentar o mal e não temer os
inimigos que nos queriam ofender e destruir.
Assim, em meio as superstições e a dureza da vida pela sobrevivência,
formava-se a nossa personalidade! Na vida
adulta, conscientes, tínhamos que nos libertar dos nossos medos, frutos dos
nossos “fantasmas”. Era tudo mais fácil! Quem, já amadurecido, continuava
acreditar em bicho papão e dele ter medo?
Viver, então, era a
construção de um processo de superação dos nossos temores induzidos na infância
e na adolescência e da consolidação de um equilíbrio interior, que se baseava
na descoberta de um valor imprescindível, tanto do ponto-de-vista individual,
como coletivo, como é a Segurança. Eu nasci! Sou um Indivíduo! Eu tenho consciência do meu Ser em expansão
num mundo que se considerava seguro! Daí, a minha sensação de leveza e
desapego, de destemor e bravura, de coragem e determinação. Em mim havia um
sensação maravilhosa do homem bom e pacífico, que se sentia seguro e que, por
não atentar contra a vida dos outros seres humanos , podia caminhar, seguro,
pelas veredas da vida.
Hoje, já não ligo o radinho de pilhas, às cinco da manhã,
para ouvir as notícias, enquanto faço o suco que adoro. Mas a empregada chega,
em seguida, sem dar bom dia, dizendo que
mataram dois no seu bairro. Não me atrevo, muito menos, a ligar a TV. Antes de
tomar banho, olho para a Bíblia, penso nos Salmos do xará Salomão, o Rei, mas
desisto, pois não sei quem são, hoje, os meus inimigos. Antes de sair pro
trabalho, a mulher manifesta uma “virose”. Ligo pra farmácia peço que me mandem
uns antitérmicos e antitussígenos por um moto-taxista. O rapaz chega,
encara-me, sem me entregar os remédios, e abre o verbo: “Doutor, cuide de sua
casa, coloque cerca elétrica e monte câmeras filmadoras, pois essa noite a
polícia matou três assaltantes!” Já na clínica, a secretária confirma a
instalação de um caríssimo sistema eletrônico de segurança, mostrando que é o
medo o que determina o nosso “modo de viver”.
Fomos “convencidos” a não ir mais passar fim-de-semana no
sítio, nem andarmos mais juntos. A clínica, que tinha em Janduís, e atendia a
mais de 3 mil pessoas da região, fui obrigado a fechar. Sinto-me aliviado,
quando chego em casa, às 19 horas, mas tenho que ficar todo trancado como se
fosse um prisioneiro. Olho pros jornais, mas não me interessa abri-los.
Sintonizo canais de TV internacionais, inclusive em russo, mas não me animo.
Então, eu me pergunto: tenho medo de uma violência contra
mim e meus familiares? Ou perdi a esperança ao sentir o desmoronamento de
valores individuais e coletivos,o que
faz com que nos tornemos apáticos e emocionalmente embotados, onde “viver não é
preciso, apenas navegar é preciso!
*Médico psiquiatra
- Texto publicado
em 1º de junho de 2014 no jornal Tribuna do Norte
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