Caboclo
ativista
Por
Xico Graziano*
José Batistela, octogenário, personagem famoso em
Araras (SP), minha terra natal, me escreveu dias atrás, logo após a primeira
das manifestações de rua. Gente simples do interior, roceiro ainda por cima, o
sitiante não conseguia entender direito a confusão existente na metrópole.
"Contra o que, afinal, lutam esses jovens?"
Senti-me, de cara, impotente para explicar o porquê
daqueles acontecimentos. Eu próprio, temperado há tempos na selva de pedra, mal
compreendia o sentido daquilo que testemunhara no centro de São Paulo. As ruas
pareciam demonstrar uma complexa mistura de rebeldia, ideologia, oportunismo,
esperança e temor sobre o futuro. Não tive como responder, naquele momento, ao
meu matuto conterrâneo.
Na sequência, conforme todos vimos, cresceram as
passeatas, ganhando o apoio popular, espalhando-se pelo País. Surgida na
reivindicação do transporte, aos poucos seu propósito mais amplo e difuso se
delineou. As manifestações, embora contaminadas por grupelhos bandidos,
carregavam uma forte negação do sistema político. Os jovens, ficou claro,
gritam por uma sociedade decente. Acorda, Brasil.
Mais esclarecido sobre o rumo do movimento, tomei
coragem para retornar ao seu Zé Batistela. Remeti a ele, em meu amparo, um
apanhado de opiniões. Ignácio de Loyola Brandão, escritor dos melhores, disse
que nos ônibus as pessoas viajam qual "gado amontoado", mas os
protestos eram "contra a vida miserável, expressam o saco cheio".
Fernando Henrique Cardoso argumentou que as razões se encontram "na
carestia, na má qualidade dos serviços públicos, na corrupção, no desencanto da
juventude frente ao futuro". Demétrio Magnoli, sociólogo da USP, concluiu
que as pessoas estão "fartas do governo e da oposição, da corrupção e da
impunidade, da soberba e do descaso". Opiniões abalizadas.
Traduzi assim essa gritaria que anda assustando a
Nação. Na briga contra o valor da passagem dos ônibus, claramente se encontra a
frustração da juventude acerca dos destinos políticos no Brasil, a insatisfação
contra a podridão do poder. Os jovens parecem se sentir desdenhados, esquecidos
e humilhados pela política degradante, corrupta e falsa, que abominam. No país
do futebol, dos estádios que custam os olhos da cara, nunca sobra recurso para
melhorar a vergonha da saúde, a tristeza do ensino fundamental, a tragédia da
segurança pública.
Calejado no trato da terra desde quando os colonos
italianos para cá vieram cuidar de cafezal, por mais que eu me esforçasse para
explicar as coisas, seu Zé Batistela mostrava-se ainda ensimesmado.
Compreensivelmente, me retrucou. Ele sente lá na roça o desencanto da sociedade
brasileira com a política velhaca instalada na República, as promessas
mentirosas, a lambança. Mas por que, de repente, a boiada estourou?
Não é fácil explicar a profunda transformação,
global, que tem sofrido a democracia representativa na era da comunicação
digital. À margem dos partidos, até mesmo contra eles, as redes sociais geram
uma sociedade articulada, cheia de comunidades virtuais, mas,
contraditoriamente, efêmera e anárquica. No passado, as massas revoltosas
precisavam do discurso inflamado nas tribunas; agora, os sonhos da mudança se
alimentam do computador. Ou no celular.
Reminiscências me tomaram a mente. Nos anos 70,
estudantes de Agronomia em Piracicaba, nós enfrentamos a prepotência da polícia
nas passeatas contra a ditadura militar. Jogamos bolinhas de gude para
atrapalhar o passo dos cavalos, atiramos pedras nos escudos, nos esgoelamos
pela democracia, todos unidos pelo utópico socialismo. Mais tarde, maduro na
vida, acompanhei satisfeito a geração de meus filhos se pintar de verde e
amarelo e exigir a derrubada de um mandatário desonroso.
A simpatia pelo protesto juvenil me desafia a
convencer o conservador Zé Batistela a aceitar o processo de mudança delineado
nas ruas. Mas ele permanece reticente. Quando, na televisão, viu os
governantes, do Rio de Janeiro e de São Paulo, felizes anunciarem a redução do
preço das passagens, me telefonou: decepcionado, queria agora saber de onde
sairia o dinheiro para cobrir a diferença da passagem. Embora caipira, ele sabe
que inexiste mágica na administração pública.
Governar se resume a estabelecer prioridades no
gasto orçamentário. Por exemplo: apenas metade de um estádio Mané Garrincha
evitaria que 500 mil cabeças de gado, um quarto do rebanho, morressem
esqueléticas pela seca do Semiárido; com a outra metade se construiriam
cisternas e açudes, se protegeriam inúmeras áreas fragilizadas pela
desertificação e ampliaria a irrigação dos pequenos agricultores. A tragédia da
seca nordestina, a maior dos últimos 50 anos, passou quase despercebida na
sociedade urbana que se rebela nesses dias. Ninguém gritou, o campo ficou
esquecido.
O dinheiro de uma reforma do Maracanã, se aplicado
na construção de armazéns, no seguro de renda agrícola, na pesquisa da Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na defesa agropecuária, ajudaria
de forma duradoura, não apenas durante um campeonato, no desenvolvimento
nacional. Um pedaço da grana consumida na Copa, se investida na estrutura da
logística nacional, facilitaria o escoamento da safra, consertaria a buraqueira
das rodovias, reduziria as perdas, diminuiria o frete. Sem roubalheira.
Moral da história para José Batistela: os caboclos,
como ele, em vez de ficarem omissos, eternamente chorosos nos rincões, que
abram os olhos, aprendam a se organizar, participar da sociedade de massas,
defendendo suas demandas. Tornou-se o velho, em duas semanas, um aprendiz de
ativista, com uma marca de origem: pacato como sempre foi, abomina atos de
violência. Vandalismo, jamais.
*Xico Graziano é
agrônomo, foi secretário de Agricultura e secretário do Meio Ambiente do Estado
de São Paulo. e-mail: xicograziano@terra.com.br
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