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domingo, 7 de setembro de 2014

Um grito de morte na parada do dia 7

Por João Bosco de Araújo*
Jornalista boscoaraujo@assessorn.com  

Foto acervo da caicoense Criva Coelho (Banda do CDS)
A parada do desfile de 7 de Setembro transcorrera como nos anos anteriores, mas o ano de 1969 era diferente porque foi nesse ano meu primeiro desfile formado pelos alunos do então Ginásio Estadual Joaquim Apolinar (GEJA), também foi o derradeiro, diante da ordem de dispensa nos anos seguintes. 

O fato é que encerrada a programação cívico-militar, já passava do meio-dia, momento de apreciar o retorno das pessoas que, tradicionalmente, se reuniam nas duas calçadas da Coronel Martiniano, tendo como principal avenida do centro de Caicó.

O calor daquela manhã nos convidava a amenizar o sol debaixo da sombra do pé de fícus da casa dos meus avós maternos, colada na bodega de José Teófilo, esquina da avenida Rio Branco com rua Augusto Monteiro, a dois quarteirões do local do desfile findo. Por diversas vezes, três rapazes montados em cavalos de raça cruzavam a esquina. Ainda carregavam as fitas que simbolizaram o grito dado pelo Príncipe Regente luso de “independência ou morte”, na beira do riacho.

Bem ali perto, estava o Barra Nova, não o Ipiranga, e por alguns instantes ouviram-se o estampido, não de liberdade, era de morte, e um corpo estendido no chão. O homem caído, já sem vida, era Manoel Chicola, alvejado por disparos de balas dentro do estabelecimento comercial de Zé Teófilo, das Oiticicas, efetuados por “Cambitinha” (Francisco Medeiros Filho) e acobertado por outro cavaleiro, bem no estilo das fitas de faroestes exibidas no São Francisco, cujo cartaz e letreiros iluminados estampavam o filme da noite no cinema em frente ao crime, na outra esquina. 
 
Não fomos testemunhas do ocorrido por questões estratégicas, suponho, do próprio autor do episódio, pelo fato da presença do grupo de jovens debaixo da árvore, ou da saia da nossa avó Luzia Tavares. Éramos, eu, minha irmã Sueli, o namorado dela, Antônio Nilson, outras irmãs Salete e Sônia, meu irmão Gilberto, nossa vizinha Nevinha, sua irmã Gracinha, filhas do comerciante José Leônidas e outras pessoas que não me recordo mais. Foi apenas o tempo suficiente de sairmos do local.


Nossa residência, parede e meia à casa de vó Luzia, estava a cerca de 10 metros dos disparos que ecoaram rua afora, estendendo casa adentro, acompanhados de um silêncio tenebroso, que após frações de segundos foi rompido pelas pisadas compassadas fortemente sobre a calçada. Sutilmente, abro uma brecha da janela e vejo passar fugindo em alta disparada “Andorinha” (Vivaldo Melo), ainda garoto, da nosso idade, filho de Chico Melo, que morava do lado direito, perto do Serrote, mas desnorteado correu no sentido oposto. Ele estava peruando dentro da bodega e o zumbido das balas o martirizou por muito tempo, contava. Por pouco não foi alvejado, dizia Teófilo, posto do outro lado do balcão a conversar com a vítima.

Nesse ínterim, após acompanhar pela fresta da janela o “velocista” Andorinha (depois, rapaz ele foi trabalhar nos Correios, vindo a falecer de enfarte ainda moço) desloco o ângulo da vista para o outro lado e vejo a cena do crime. Manoel Chicola inerte ao chão, no pé do poste, e seu filho Mauricir a retirar, imediatamente, dos quartos dele, uma faca peixeira embainhada daquelas de marchante, com mais de 12 polegadas de tamanho. Chicola era comerciante desse ramo e tinha inimizade com o pai do homicida, Chico Medeiros, ex-prefeito caicoense, por questões de politicagem, muito comum na época entre dinartistas, de bandeira vermelha, e aluizistas, do lado verde.


Antes da execução, "Cambitinha" deixara o cavalo amarrado em outro poste do lado da Rio Branco. Em frente ficavam os armazéns de Manoel Chicola, de vendas de peixes e casa de jogos. Chico Cunha, rapaz solteirão, experiente, leitor assíduo de livros de bolso, salvou a vida de Mauricir. Segundo contava, ao ouvirem os disparos, o filho de Manoel correu em direção à porta fechada, barrado por Cunha, que o empurrou com os pés, fazendo-o cair ao chão, bem ao estilo dos mocinhos do filme, acreditava. 

Ora, ao abrirem a porta, viram a dupla de cavalos em disparada, na direção do rio Barra Nova e o atirador a girar o revólver entre os dedos da sua mão, narravam. Pode-se imaginar a fidelidade cinematográfica e entender que se Chico Cunha não travasse àquela porta, o alvo das balas também teria acertado o filho do morto ao procurar defender o pai tombado. 

O local do crime ficou visitado por muito tempo, para matar a curiosidade de quem queria ver de perto os buracos das balas e o sangue na parede impresso pelas mãos do baleado, ao tentar se segurar do impacto que o empurrou, cambaleando até o chão da rua. 

Cenas de uma Caicó violenta, de um 7 de Setembro que parou há 40 anos. Do outro lado da história, jovens caicoenses tombaram mortos, mas por ideários de independência, alvejados pela intolerância imposta pelo medo do imperialismo internacional, sob a custódia do regime de plantão.
*Texto publicado no Diário de Natal, há 5 anos, na coluna Contos do Meu Seridó, escrita por este jornalista.

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